Poetray

BannerFans.com
Google
 

sexta-feira, setembro 28, 2007

Os Ombros Suportam o Mundo



Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
(Carlos Drummond de Andrade)
Veja mais: Biografia e Poemas de Drummomd

domingo, setembro 23, 2007

Todas as cartas de amor...

Fernando Pessoa(Poesias de Álvaro de Campos)

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)




Álvaro de Campos, 21/10/1935

sábado, setembro 22, 2007

José _ Poema de Carlos Drummond de Andrade

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, proptesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse....
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?

quarta-feira, setembro 19, 2007

A Carlos Drummond de Andrade _ João Cabral de Melo Neto

Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.

Não há guarda-chuva
contra o amor
que mastiga e cospe como qualquer boca,
que tritura como um desastre.

Não há guarda-chuva
contra o tédio:
o tédio das quatro paredes, das quatro estações,
dos quatro pontos cardeais.

Não há guarda-chuva
contra o mundo
cada dia devora do nos jornais
sob as espécies de papel e tinta.

Não há guarda-chuva
contra o tempo,
rio fluindo sob a casa, correnteza
carregando os dias, os cabelos.

Texto extraído do livro "João Cabral de Melo Neto - Obra completa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1994, pág. 79.

sábado, setembro 08, 2007

Sobre Carlos Drummond de Andrade...

Ex-genro e tradutor lembra a amizade e trabalho com poeta

Escritor Manuel Graña Etcheverry planeja lançar uma coletânea de cartas com a ajuda de Antonio Carlos Secchin

Imagine a seguinte situação: um advogado argentino escreve a um senhor brasileiro, poeta célebre, lhe comunicando que se casaria com sua filha única, seu xodó. Na carta, nada de elogios a si próprio, e sim uma apresentação de seus defeitos.

Foi dessa forma que começou o relacionamento entre Carlos Drummond de Andrade e Manuel Graña Etcheverry, seu futuro genro e tradutor para o espanhol - acima de tudo, um amigo para o resto da vida, dos poucos que desfrutaram de sua intimidade que ainda estão vivos.

''''Ele me respondeu de imediato. Minha carta o agradou porque eu me retratava com sinceridade'''', conta, quase seis décadas depois, Etcheverry, ''''Manolo para os íntimos'''' - assim ele assinou o e-mail enviado ao Estado na semana passada, em pronta resposta a perguntas mandadas pela reportagem.

O escritor, de 91 anos, fala com prazer da amizade, inabalável mesmo com a separação dele de Maria Julieta, em 1972. E diz que sente falta de Drummond. ''''Compenso essas saudades relendo-o.'''' Apesar de dominar o idioma (verteu para o português obras de García Lorca), o poeta deixou nas mãos do genro, que jamais havia assumido tal tarefa, traduções de poemas como A Mesa e A Máquina do Mundo. Etcheverry também participou de projetos de compilação de sua obra.

''''Modéstia à parte, Carlos sabia que, em matéria de versificação, eu era versado'''', justifica, deixando clara sua admiração pelo amigo: ''''Carlos construiu um sistema de rimas único no mundo, tão sutil que os leitores ficavam desnorteados. São rimas de consoantes, como em ''''perfume-nome'''',''''corpo-harpa'''', ''''tumbas-pombas''''.

''''Ao falar de sua personalidade, relembra o escritor metódico, que jamais alterava sua rotina; do homem que amava profundamente a filha, tanto que, após sua morte, disse-lhe que ''''não encontrava mais razões para viver''''; do ser humano que ''''tinha tanto respeito pela vida, que quando aparecia uma barata, ele a empurrava suavemente com um jornal até que ela saísse para a rua''''.

Etcheverry guarda muitas cartas de Drummond para Maria Julieta e para ele, as quais pretende editar com a ajuda do acadêmico Antonio Carlos Secchin.