Destino...
Sempre quando ouço algo a esse respeito me lembro de um texto de um colunista da Folha.
Quando ele o escreveu eu não me lembro, a razão de tê-lo escrito, muito menos.
Também não consigo descobrir o motivo de tê-lo retido na memória. Só sei que vive em mim como lembranças que se manifestam em dia de chuva...
“Homem deve lutar por seu destino” se me lembro bem era o título, e se não me falha a memória o colunista era o grande escritor Paulo coelho. Infelizmente, o que tenho, o que hoje encontrei dentro de um velho livro do Arnaldo Jabor, “Eu Sei Que Vou Te Amar”, o qual tive a honra de adquiri-lo autografado na Bienal do livro em São Paulo, é apenas o pequeno recorte do conto sem detalhes do autor e sem registro do tempo. Mas o que importa na vida é a história em si.
Vou repassar a história especialmente pra você que gosta de refletir histórias e delas tirar proveito para a própria vida; pois os ensinamentos estão em tudo, nos pequenos e grandes fatos da história do dia a dia; é-la:
“Malba Tahan conta a história de um homem que encontrou um anjo no deserto e lhe deu água. “Sou o anjo da morte e vinha buscá-lo”. Disse o anjo. “Mas, como você foi bom, vou lhe emprestar o ‘Livro do Destino’ por cinco minutos; você pode mudar seu fim”.
O anjo lhe entregou o livro. Ao folhear suas páginas, o homem foi lendo a vida dos seus vizinhos. Ficou descontente com o destino deles: “Estas pessoas não merecem coisas tão boas”, pensou. De caneta em punho, começou a alterar o que estava escrito nas páginas, piorando a vida de cada um.
Finalmente, chegou na página de sua vida. Viu seu final trágico, mas, quando preparava-se para mudá-lo, o livro sumiu. Os cinco minutos já tinha passado.
E o anjo, ali mesmo, levou a alma do homem.”
Aconteceu algo parecido comigo; por isso quis contar essa história.
Mas o que aconteceu comigo ainda não esta escrito, exceto no livro da vida.
O que aconteceu comigo?
Tem certeza que quer saber a minha história?
sexta-feira, outubro 26, 2007
terça-feira, outubro 23, 2007
TESES SOBRE FEUERBACH _ Karl Max
I-O defeito fundamental de todo materialismo anterior - inclusive o de Feuerbach - está em
que só concebe o objeto, a realidade, o ato sensorial, sob a forma do objeto ou da
percepção, mas não como atividade sensorial humana, como prática, não de modo
subjetivo. Daí decorre que o lado ativo fosse desenvolvido pelo idealismo, em oposição
ao materialismo, mas apenas de modo abstrato, já que o idealismo, naturalmente, não
conhece a atividade real, sensorial, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis, realmente
diferentes dos objetos de pensamento; mas tampouco concebe a atividade humana como
uma atividade objetiva. Por isso, em A Essência do Cristianismo, só considera como
autenticamente humana a atividade teórica, enquanto a prática somente é concebida e
fixada em sua manifestação judia grosseira. Portanto, não compreende a importância da
atuação "revolucionária", prático-crítica.
II-O problema de se ao pensamento humano corresponde uma verdade objetiva não é um
problema da teoria, e sim um pro blema prático. É na prática que o homem tem que
demonstrar a verdade, isto é, a realidade, e a força, o caráter terreno de seu pensamento.
O debate sobre a realidade ou a irrealidade de um pensamento isolado da prática é um
problema puramente escolástico.
III-A teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação e de
que, portanto, homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e de
educação modificada esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos
homens e que o próprio educador precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente, à
divisão da sociedade em duas partes, uma das quais se sobrepõe à sociedade (como, por
exemplo, em Robert Owen). A coincidência da modificação das circunstâncias e da
atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente compreendida como prática
transformadora.
IV-Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa, do desdobramento do mundo em um
mundo religioso, imaginário, e outro real. Sua tarefa consiste em decompor o mundo
religioso em sua base terrena. Não vê que, uma vez realizado esse trabalho, o principal
continua por fazer. Na realidade, o fato de que a base terrena se separe de si mesma e fixe
nas nuvens um reino independente só pode ser explicado através da dilaceração interna e
da contradição desse fundamento terreno consigo mesmo. Este último deve, portanto,
primeiro ser compreendido em sua contradição e em seguida revolucionado praticamente
mediante a eliminação da contradição. Por conseguinte, depois de descobrir, por exemplo
na família terrena o segredo da sagrada família, é preciso criticar teoricamente aquela e
transformá-la praticamente.
V-Não satisfeito com o pensamento abstrato, Feuerbach recorre à percepção sensível. Não
concebe, porém, a sensibilidade como uma atividade prática, humano-sensível.
VI-Feuerbach dilui a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é
algo abstrato, interior a cada indivíduo isolado. É, em sua realidade, o conjunto das
relações sociais.
Feuerbach, que não emprende a critica dessa essência real, vê-se, portanto, obrigado
1- a fazer caso omisso da trajetória histórica, fixar o sentimento religioso em si mesmo e
pressupor um indivíduo humano abstrato, isolado;
2 - nele, a essência humana só pode ser concebida como "espécie", como generalidade
interna, muda, que se limita a unir naturalmente os muitos indivíduos.
VII-Feuerbach não vê, portanto, que o "sentimento religioso" é, também, um produto social e
que o indivíduo abstrato que ele analisa pertence, na realidade, a uma forma determinada
de sociedade.
VIII-A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que desviam a teoria para o
misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão desta
prática.
IX-O máximo a que chega o materialismo perceptivo, isto é, o materialismo que não concebe
a sensibilidade como uma atividade prática, é a percepção dos diferentes indivíduos
isolados da «sociedade civil".
X-O ponto-de-vista do antigo materialismo é a sociedade "civil"; o do novo materialismo, a
sociedade humana ou a humanidade socializada.
XI-Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se porém
de modificá-lo.
Escrito por Marx durante a primavera do 1845. Redigido e publicado pela primeira vez
em 1888, por Engels como apêndice da edição em folheto à parte de seu Ludwig
Feuerbach. Publica-se de acordo com o texto da edição em folheto à parte, de 1888,
após confronto com o manuscrito de Marx. Traduzido do espanhol.
que só concebe o objeto, a realidade, o ato sensorial, sob a forma do objeto ou da
percepção, mas não como atividade sensorial humana, como prática, não de modo
subjetivo. Daí decorre que o lado ativo fosse desenvolvido pelo idealismo, em oposição
ao materialismo, mas apenas de modo abstrato, já que o idealismo, naturalmente, não
conhece a atividade real, sensorial, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis, realmente
diferentes dos objetos de pensamento; mas tampouco concebe a atividade humana como
uma atividade objetiva. Por isso, em A Essência do Cristianismo, só considera como
autenticamente humana a atividade teórica, enquanto a prática somente é concebida e
fixada em sua manifestação judia grosseira. Portanto, não compreende a importância da
atuação "revolucionária", prático-crítica.
II-O problema de se ao pensamento humano corresponde uma verdade objetiva não é um
problema da teoria, e sim um pro blema prático. É na prática que o homem tem que
demonstrar a verdade, isto é, a realidade, e a força, o caráter terreno de seu pensamento.
O debate sobre a realidade ou a irrealidade de um pensamento isolado da prática é um
problema puramente escolástico.
III-A teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação e de
que, portanto, homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e de
educação modificada esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos
homens e que o próprio educador precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente, à
divisão da sociedade em duas partes, uma das quais se sobrepõe à sociedade (como, por
exemplo, em Robert Owen). A coincidência da modificação das circunstâncias e da
atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente compreendida como prática
transformadora.
IV-Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa, do desdobramento do mundo em um
mundo religioso, imaginário, e outro real. Sua tarefa consiste em decompor o mundo
religioso em sua base terrena. Não vê que, uma vez realizado esse trabalho, o principal
continua por fazer. Na realidade, o fato de que a base terrena se separe de si mesma e fixe
nas nuvens um reino independente só pode ser explicado através da dilaceração interna e
da contradição desse fundamento terreno consigo mesmo. Este último deve, portanto,
primeiro ser compreendido em sua contradição e em seguida revolucionado praticamente
mediante a eliminação da contradição. Por conseguinte, depois de descobrir, por exemplo
na família terrena o segredo da sagrada família, é preciso criticar teoricamente aquela e
transformá-la praticamente.
V-Não satisfeito com o pensamento abstrato, Feuerbach recorre à percepção sensível. Não
concebe, porém, a sensibilidade como uma atividade prática, humano-sensível.
VI-Feuerbach dilui a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é
algo abstrato, interior a cada indivíduo isolado. É, em sua realidade, o conjunto das
relações sociais.
Feuerbach, que não emprende a critica dessa essência real, vê-se, portanto, obrigado
1- a fazer caso omisso da trajetória histórica, fixar o sentimento religioso em si mesmo e
pressupor um indivíduo humano abstrato, isolado;
2 - nele, a essência humana só pode ser concebida como "espécie", como generalidade
interna, muda, que se limita a unir naturalmente os muitos indivíduos.
VII-Feuerbach não vê, portanto, que o "sentimento religioso" é, também, um produto social e
que o indivíduo abstrato que ele analisa pertence, na realidade, a uma forma determinada
de sociedade.
VIII-A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que desviam a teoria para o
misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão desta
prática.
IX-O máximo a que chega o materialismo perceptivo, isto é, o materialismo que não concebe
a sensibilidade como uma atividade prática, é a percepção dos diferentes indivíduos
isolados da «sociedade civil".
X-O ponto-de-vista do antigo materialismo é a sociedade "civil"; o do novo materialismo, a
sociedade humana ou a humanidade socializada.
XI-Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se porém
de modificá-lo.
Escrito por Marx durante a primavera do 1845. Redigido e publicado pela primeira vez
em 1888, por Engels como apêndice da edição em folheto à parte de seu Ludwig
Feuerbach. Publica-se de acordo com o texto da edição em folheto à parte, de 1888,
após confronto com o manuscrito de Marx. Traduzido do espanhol.
sábado, outubro 20, 2007
A filosofia entre a religião e a ciência _ Bertrand Russel
Os conceitos da vida e do mundo que chamamos "filosóficos" são
produto de dois fatores: um, constituído de fatores religiosos e éticos
herdados; o outro, pela espécie de investigação que podemos denominar
"científica", empregando a palavra em seu sentido mais amplo. Os filósofos,
individualmente, têm diferido amplamente quanto às proporções em que esses
dois fatores entraram em seu sistema, mas é a presença de ambos que, em
certo grau, caracteriza a filosofia.
"Filosofia" é uma palavra que tem sido empregada de várias maneiras,
umas mais amplas, outras mais restritas. Pretendo empregá-la em seu sentido
mais amplo, como procurarei explicar adiante. A filosofia, conforme entendo
a palavra, é algo intermediário entre a teologia e a ciência. Como a teologia,
consiste de especulações sobre assuntos a que o conhecimento exato não
conseguiu até agora chegar, mas, como ciência, apela mais à razão humana do
que à autoridade, seja esta a da tradição ou a da revelação. Todo conhecimento
definido - eu o afirmaria - pertence à ciência; e todo dogma quanto ao que
ultrapassa o conhecimento definido, pertence à teologia. Mas entre a teologia
e a ciência existe uma Terra de Ninguém, exposta aos ataques de ambos os
campos: essa Terra de Ninguém é a filosofia. Quase todas as questões do
máximo interesse para os espíritos especulativos são de tal índole que a
ciência não as pode responder, e as respostas confiantes dos teólogos já não
nos parecem tão convincentes como o eram nos séculos passados. Acha-se o
mundo dividido em espírito e matéria? E, supondo-se que assim seja, que é
espírito e que é matéria? Acha-se o espírito sujeito à matéria, ou é ele dotado
de forças independentes? Possui o universo alguma unidade ou propósito?
Está ele evoluindo rumo a alguma finalidade? Existem realmente leis da
natureza, ou acreditamos nelas devido unicamente ao nosso amor inato pela
ordem? é o homem o que ele parece ser ao astrônomo, isto é, um minúsculo
conjunto de carbono e água a rastejar, impotentemente, sobre um pequeno
planeta sem importância? Ou é ele o que parece ser a Hamlet? Acaso é ele, ao
mesmo tempo, ambas as coisas? Existe uma maneira de viver que seja nobre e
uma outra que seja baixa, ou todas as maneiras de viver são simplesmente
inúteis? Se há um modo de vida nobre, em que consiste ele, e de que maneira
realizá-lo? Deve o bem ser eterno, para merecer o valor que lhe atribuímos, ou
vale a pena procurá-lo, mesmo que o universo se mova, inexoravelmente, para
a morte? Existe a sabedoria, ou aquilo que nos parece tal não passa do último
refinamento da loucura Tais questões não encontram resposta no laboratório.
As teologias têm pretendido dar respostas, todas elas demasiado concludentes,
mas a sua própria segurança faz com que o espírito moderno as encare com
suspeita. 0 estudo de tais questões, mesmo que não se resolva esses
problemas, constitui o empenho da filosofia.
Mas por que, então, - poderíeis perguntar - perder tempo com problemas
tão insolúveis? A isto, poder-se-ia responder como historiador ou como
indivíduo que enfrenta o terror da solidão cósmica. A resposta do historiador,
tanto quanto me é possível dá-la, aparecerá no decurso desta obra. Desde que
o homem se tornou capaz de livre especulação, suas ações, em muitos
aspectos importantes, têm dependido de teorias relativas ao mundo e á vi a
humana, relativas ao bem e ao mal. Isto é tão verdadeiro em nossos dias como
em qualquer época anterior. Para compreender uma época ou uma nação,
devemos compreender sua filosofia e, para que compreendamos sua filosofia,
temos de ser, até certo ponto, filósofos. Há uma relação causal recíproca. As
circunstâncias das vidas humanas contribuem muito para determinar a sua
filosofia, mas, inversamente, sua filosofia muito contribui para determinar tais
circunstâncias. Essa ação mútua, através dos séculos, será o tema das páginas
seguintes.
Há, todavia, uma resposta mais pessoal. A ciência diz-nos o que podemos
saber, mas o que podemos saber é muito pouco e, se esquecemos quanto nos é
impossível saber, tornamo-nos insensíveis a muitas coisas sumamente
importantes. A teologia, por outro lado, nos induz â crença dogmática de que
temos conhecimento de coisas que, na realidade, ignoramos e, por isso, gera
uma espécie de insolência impertinente com respeito ao universo. A incerteza,
na presença de grandes esperanças e receios, é dolorosa, mas temos de
suportá-la, se quisermos viver sem o apoio de confortadores contos de fadas,
Não devemos também esquecer as questões suscitadas pela filosofia, ou
persuadir-nos de que encontramos, para as mesmas, respostas indubitáveis.
Ensinar a viver sem essa segurança e sem que se fique, não obstante,
paralisado pela hesitação, é talvez a coisa principal que a filosofia, em nossa
época, pode proporcionar àqueles que a estudam.
A filosofia, ao contrário do que ocorreu com a teologia , surgiu, na
Grécia, no século VI antes de Cristo. Depois de seguir o seu curso na
antigüidade, foi de novo submersa pela teologia quando surgiu o Cristianismo
e Roma se desmoronou. Seu segundo período importante, do século YI ao
século XIV, foi dominado pela Igreja Católica, com exceção de alguns poucos
e grandes rebeldes, como, por exemplo, o imperador Frederico II (1195-1250).
Este período terminou com as perturbações que culminaram na Reforma. O
terceiro período, desde o século XVII até hoje, é dominado, mais do que os
períodos que o precederam, pela ciência. As crenças religiosas tradicionais
mantêm sua importância, mas se sente a necessidade de que sejam
justificadas, sendo modificadas sempre que a ciência torna imperativo tal
passo. Poucos filósofos deste período são ortodoxos do ponto de vista
católico, e o Estado secular adquire mais importância em suas especulações do
que a Igreja.
A coesão social e a liberdade individual, como a religião e a ciência,
acham-se num estado de conflito ou difícil compromisso durante todo este
período. Na Grécia, a coesão social era assegurada pela lealdade ao Estado-
Cidade; o próprio Aristóteles, embora, em sua época, Alexandre estivesse
tornando obsoleto o Estado-Cidade, não conseguia ver mérito algum em
qualquer outro tipo de comunidade. Variava grandemente o grau em que a
liberdade individual cedia ante seus deveres para com a Cidade. Em Esparta, o
indivíduo tinha tão pouca liberdade como na Alemanha ou na Rússia
modernas; em Atenas, apesar de perseguições ocasionais, os cidadãos
desfrutaram, em seu melhor período, de extraordinária liberdade quanto a
restrições impostas pelo Estado. 0 pensamento grego, até Aristóteles, é
dominado por uma devoção religiosa e patriótica á Cidade; seus sistemas
éticos são adaptados às vidas dos cidadãos e contêm grande elemento político.
Quando os gregos se submeteram, primeiro aos macedônios e, depois, aos
romanos, as concepções válidas em seus dias de independência não eram mais
aplicáveis. Isto produziu, por um lado, uma perda de vigor, devido ao
rompimento com as tradições e, por outro lado, uma ética mais individual e
menos social. Os estóicos consideravam a vida virtuosa mais como uma
relação da alma com Deus do que como uma relação do cidadão com o
Estado. Prepararam, dessa forma, o caminho para o Cristianismo, que, como o
estoicismo, era, originalmente, apolítico, já que, durante os seus três primeiros
séculos, seus adeptos não tinham influência no governo. A coesão social,
durante os seis séculos e meio que vão de Alexandre a Constantino, f oi
assegurada, não pela filosofia nem pelas antigas fidelidades, mas pela força -
primeiro a força dos exércitos e, depois, a da administração civil. Os exércitos
romanos, as estradas romanas, a lei romana e os funcionários romanos,
primeiro criaram e depois preservaram um poderoso Estado centralizado.
Nada se pode atribuir à filosofia romana, já que esta não existia.
Durante esse longo período, as idéias gregas herdadas da época da
liberdade sofreram um processo gradual de transformação. Algumas das
velhas idéias, principalmente aquelas que deveríamos encarar como
especificamente religiosas, adquiriram uma importância relativa; outras, mais
racionalistas, foram abandonadas, pois não mais se ajustavam ao espírito da
época. Desse modo, os pagãos posteriores foram se adaptando á tradição
grega, até esta poder incorporar-se na doutrina cristã.
O Cristianismo popularizou uma idéia importante, já implícita nos
ensinamentos dos estóicos, mas estranha ao espírito geral da antigüidade, isto
é, a idéia de que o dever do homem para com Deus é mais imperativo do que o
seu dever para com o Estado.l A opinião de que "devemos obedecer mais a
Deus que ao homem", como Sócrates e os Apóstolos afirmavam, sobreviveu à
conversão de Constantino, porque os primeiros cristãos eram arianos ou se
sentiam inclinados para o arianismo. Quando os imperadores se tornaram
ortodoxos, foi ela suspensa temporariamente. Durante o Império Bizantino,
permaneceu latente, bem como no Império Russo subseqüente, o qual derivou
do Cristianismo de Constantinopla. Mas no Ocidente, onde os imperadores
católicos foram quase imediatamente substituídos ( exceto em certas partes da
Gália ) por conquistadores bárbaros heréticos, a superioridade da lealdade
religiosa sobre a lealdade política sobreviveu e, até certo ponto, persiste ainda
hoje.
A invasão dos bárbaros pôs fim, por espaço de seis séculos, à civilização
da Europa Ocidental. Subsistiu, na Irlanda, até que os dinamarqueses a
destruíram no século IX. Antes de sua extinção produziu, lá, uma figura
notável, Scotus Erigena. No Império Oriental, a civilização grega sobreviveu,
em forma dissecada, como num museu, até à queda de Constantinopla, em
1453, mas nada que fosse de importância para o mundo saiu de
Constantinopla, exceto uma tradição artística e os Códigos de Direito Romano
de Justiniano.
Durante o período de obscuridade, desde o fim do século V até a metade
do século XI, o mundo romano ocidental sofreu algumas transformações
interessantes. O conflito entre o dever para com Deus e o dever para com o
Estado, introduzido pelo Cristianismo, adquiriu o caráter de um conflito entre
a Igreja e o rei. A jurisdição eclesiástica do Papa estendia-se sobre a Itália,
França, Espanha, Grã-Bretanha e Irlanda, Alemanha, Escandinávia e Polônia.
A princípio, fora da Itália e do sul da França foi muito leve o seu controle
sobre bispos e abades, mas, desde o tempo de Gregório VII ( fins do século XI
), tornou-se real e efetivo. Desde então o clero, em toda a Europa Ocidental,
formou uma única organização, dirigida por Roma, que procurava o poder
inteligente e incansavelmente e, em geral, vitoriosamente, até depois do ano
1300, em seus conflitos com os governantes seculares. O conflito entre a
Igreja e o Estado não foi apenas um conflito entre o clero e os leigos; foi,
também, uma renovação da luta entre o mundo mediterrâneo e os bárbaros do
norte. A unidade da Igreja era um reflexo da unidade do Império Romano; sua
liturgia era latina, e os seus homens mais proeminentes eram, em sua maior
parte, italianos, espanhóis ou franceses do sul. Sua educação, quando esta
renasceu, foi clássica; suas concepções da lei e do governo teriam sido mais
compreensíveis para Marco Aurélio do que para os monarcas contemporâneos.
A Igreja representava, ao mesmo tempo, continuidade com o passado e com o
que havia de mais civilizado no presente.
O poder secular, ao contrário, estava nas mãos de reis e barões de origem
teutônica, os quais procuravam preservar, o máximo possível, as instituições
que haviam trazido as florestas da Alemanha. O poder absoluto era alheio a
essas instituições, como também era estranho, a esses vigorosos
conquistadores, tudo aquilo que tivesse aparência de uma legalidade monótona
e sem espírito. O rei tinha de compartilhar seu poder com a aristocracia feudal,
mas todos esperavam, do mesmo modo, que lhes fosse permitido, de vez em
quando, uma explosão ocasional de suas paixões em forma de guerra,
assassínio, pilhagem ou rapto. é possível que os monarcas se arrependessem,
pois eram sinceramente piedosos e, afinal de contas, o arrependimento era em
si mesmo uma forma de paixão. A Igreja, porém, jamais conseguiu produzir
neles a tranqüila regularidade de uma boa conduta, como a que o empregador
moderno exige e, às vezes, consegue obter de seus empregados. De que lhes
valia conquistar o mundo, se não podiam beber, assassinar e amar como o
espírito lhes exigia? E por que deveriam eles, com seus exércitos de altivos,
submeter-se ás ordens de homens letrados, dedicados ao celibato e destituídos
de forças armadas? Apesar da desaprovação eclesiástica, conservaram o duelo
e a decisão das disputas por meio das armas, e os torneios e o amor cortesão
floresceram. às vezes, num acesso de raiva, chegavam a matar mesmo
eclesiásticos eminentes.
Toda a força armada estava do lado dos reis, mas, não obstante, a Igreja
saiu vitoriosa. A Igreja ganhou a batalha, em parte, porque tinha quase todo o
monopólio do ensino e, em parte, porque os reis viviam constantemente em
guerra. uns com os outros; mas ganhou-a, principalmente, porque, com muito
poucas exceções, tanto os governantes como ó povo acreditavam sinceramente
que a Igreja possuía as chaves do céu. A Igreja podia decidir se um rei devia
passar a eternidade no céu ou no inferno; a Igreja podia absolver os súditos do
dever de fidelidade e, assim, estimular a rebelião. Além disso, a Igreja
representava a ordem em lugar da anarquia e, por conseguinte, conquistou o
apoio da classe mercantil que surgia. Na Itália, principalmente, esta última
consideração foi decisiva.
A tentativa teutônica .de preservar pelo menos uma independência. parcial
da Igreja manifestou-se não apenas na política, mas, também, na arte, no
romance, no cavalheirismo e na guerra. Manifestou-se muito pouco no mundo
intelectual, pois o ensino se achava quase inteiramente nas mãos do clero. A
filosofia explícita da Idade Média não é um espelho exato da época, mas
apenas do pensamento de um grupo. Entre os eclesiásticos, porém -
principalmente entre os frades franciscanos - havia alguns que, por várias
razões, estavam em desacordo com o Papa. Na Itália, ademais, a cultura
estendeu-se aos leigos alguns séculos antes de se estender até ao norte dos
Alpes. Frederico II, que procurou fundar uma nova religião, representa o
extremo da cultura antipapista; Tomás de Aquino, que nasceu no reino de
Nápoles, onde o poder de Frederico era supremo, continua sendo até hoje o
expoente clássico da filosofia papal. Dante, cerca de cinqüenta anos mais
tarde, conseguiu chegar a uma síntese, oferecendo a única exposição
equilibrada de todo o mundo ideológico medieval
Depois de Dante, tanto por motivos políticos como intelectuais, a síntese
filosófica medieval se desmoronou. Teve ela, enquanto durou, uma qualidade
de ordem e perfeição de miniatura: qualquer coisa de que esse sistema se
ocupasse, era colocada com precisão em relação com o que constituía o seu
cosmo bastante limitado. Mas o Grande Cisma, o movimento dos Concílios e
o papado da renascença produziram a Reforma, que destruiu a unidade do
Cristianismo e a teoria escolástica de governo que girava em torno do Papa. N
o período da Renascença, o novo conhecimento, tanto da antigüidade como da
superfície da terra, fez com que os homens se cansassem de sistemas, que
passaram a ser considerados como prisões mentais. A astronomia de
Copérnico atribuiu á terra e ao homem uma posição mais humilde do que
aquela que haviam desfrutado na teoria de Ptolomeu. O prazer pelos f atos
recentes tomou o lugar, entre os homens inteligentes, do prazer de raciocinar,
analisar e construir sistemas. Embora a Renascença, na arte, conserve ainda
uma determinada ordem, prefere, quanto ao que diz respeito ao pensamento,
uma ampla e fecunda desordem. Neste sentido, Montaigne é o mais típico
expoente da época.
Tanto na teoria política como em tudo o mais, exceto a arte, a ordem sofre
um colapso. A Idade Média, embora praticamente turbulenta, era dominada,
em sua ideologia, pelo amor da legalidade e por uma teoria muito precisa do
poder político. Todo poder procede, em última análise, de Deus; Ele delegou
poder ao Papa nos assuntos sagrados, e ao Imperador nos assuntos seculares.
Mas tanto o Papa como o Imperador perderam sua importância durante o
século XV. O Papa tornou-se simplesmente um dos príncipes italianos,
empenhado no jogo incrivelmente complicado e inescrupuloso do poder
político italiano. As novas monarquias nacionais na França, Espanha e
Inglaterra tinham, em seus próprios territórios, um poder no qual nem o Papa
nem o Imperador podiam interferir. O Estado nacional, devido, em grande
parte, à pólvora, adquiriu uma influência sobre o pensamento e o modo de
sentir dos homens, como jamais exercera antes - influência essa que,
progressivamente, destruiu o que restava da crença romana quanto à unidade
da civilização.
Essa desordem política encontrou sua expressão no Príncipe, de
Maquiavel. Na ausência de qualquer princípio diretivo, a política se
transformou em áspera luta pelo poder. O Príncipe dá conselhos astutos
quanto à maneira de se participar com êxito desse jogo. O que já havia
acontecido na idade de ouro da Grécia, ocorreu de novo na Itália renascentista:
os freios morais tradicionais desapareceram, pois eram considerados como
coisa ligada à superstição; a libertação dos grilhões tornou os indivíduos
enérgicos e criadores, produzindo um raro florescimento do gênio mas a
anarquia e a traição resultantes, inevitavelmente, da decadência da moral,
tornou os italianos coletivamente impotentes, e caíram, como os gregos, sob o
domínio de nações menos civilizadas do que eles, mas não tão destituídas - de
coesão social.
Todavia, o resultado foi menos desastroso do que no caso da Grécia, pois
as nações que tinham acabado de chegar ao poder, com exceção da Espanha,
se mostravam capazes de tão grandes realizações como o havia sido a Itália.
Do século XVI em diante, a história do pensamento europeu é dominada pela
Reforma. Reforma foi um movimento complexo, multiforme, e seu êxito se
deve a numerosas causas. De um modo geral, foi uma revolta das nações do
norte contra o renovado domínio de Roma. A religião fora a força que
subjugara o Norte, mas a religião, na Itália, decaíra: o papado permanecia
como uma instituição, extraindo grandes tributos da Alemanha e da Inglaterra,
mas estas nações, que eram ainda piedosas, não podiam sentir reverência
alguma para com os Bórgias e os Médicis, que pretendiam salvar as almas do
purgatório em troca de dinheiro, que esbanjavam no luxo e na imoralidade.
Motivos nacionais motivos econômicos e motivos, religiosos conjugaram-se
para fortalecer a revolta contra Roma. Além disso, os príncipes logo
perceberam que, se a Igreja se tornasse, em seus territórios, simplesmente
nacional, eles seriam capazes de dominá-la, tornando-se, assim, muito mais
poderosos, em seus países, do que jamais o haviam sido compartilhando o seu
domínio com o Papa. Por todas essas razões, as inovações teológicas de
Lutero foram bem recebidas, tanto pelos governantes como pelo povo, na
maior parte da Europa Setentrional.
A Igreja Católica procedia de três fontes. Sua história sagrada era judaica;
sua teologia, grega, e seu governo e leis canônicas, ao menos indiretamente,
romanos. A Reforma rejeitou os elementos romanos, atenuou os elementos
gregos e fortaleceu grandemente os elementos judaicos. Cooperou, assim, com
as forças nacionalistas que estavam desfazendo a obra de coesão nacional que
tinha sido levada a cabo primeiro pelo Império Romano e, depois, pela Igreja
Romana. Na doutrina católica, a revelação divina não terminava na sagrada
escritura, mas continuava, de era em era, através da Igreja, à qual, pois, era
dever do indivíduo submeter suas opiniões pessoais. Os protestantes, ao
contrário, rejeitaram a Igreja como veículo da revelação divina; a verdade
devia ser procurada unicamente na Bíblia, que cada qual podia interpretar à
sua maneira. Se os homens diferissem em sua interpretação, não havia
nenhuma autoridade designada pela divindade que resolvesse tais
divergências. Na prática, o Estado reivindicava o direito que pertencera antes
à Igreja - mas isso era uma usurpação. Na teoria protestante, não devia haver
nenhum intermediário terreno entre a alma e Deus.
Os efeitos dessa mudança foram importantes. A verdade não mais era
estabelecida mediante consulta à autoridade, mas por meio da meditação
íntima. Desenvolveu-se, rapidamente, uma tendência para o anarquismo na
política e misticismo na religião, o que sempre fora difícil de se ajustar à
estrutura da ortodoxia católica. Aconteceu que, em lugar de um único
Protestantismo, surgiram numerosas seitas; nenhuma filosofia se opunha à
escolástica, mas havia tantas filosofias quantos eram os filósofos. Não havia,
no século XIII, nenhum Imperador que se opusesse ao Papa, mas sim um
grande número de reis heréticos. O resultado disso, tanto no pensamento como
na literatura, foi um subjetivismo cada vez mais profundo, agindo primeiro
como uma libertação saudável da escravidão espiritual mas caminhando,
depois, constantemente, para um isolamento pessoal, contrário à solidez
social.
A filosofia moderna começa com Descartes, cuja certeza fundamental é a
existência de si mesmo e de seus pensamentos, dos quais o mundo exterior
deve ser inferido. Isso constitui apenas a primeira fase de um desenvolvimento
que, passando por Berkeley e Kant, chega a Fichte, para quem tudo era apenas
uma emanação do eu. Isso era uma loucura, e, partindo desse extremo, a
filosofia tem procurado, desde então, evadir-se para o mundo do senso comum
cotidiano.
Com o subjetivismo na filosofia, o anarquismo anda de mãos dadas com a
política. Já no tempo de Lutero, discípulos inoportunos e não reconhecidos
haviam desenvolvido a doutrina do anabatismo, a qual, durante algum tempo,
dominou a cidade de Wünster. Os anabatistas repudiavam toda lei, pois
afirmavam que o homem bom seria guiado, em todos os momentos, pelo
Espírito Santo, que não pode ser preso a fórmulas. Partindo dessas premissas,
chegam ao comunismo e à promiscuidade sexual. Foram, pois, exterminados,
após uma resistência heróica. Mas sua doutrina, em formas mais atenuadas, se
estendem pela Holanda, Inglaterra e Estados Unidos; historicamente, é a
origem do "quakerismo". Uma forma mais feroz de anarquismo, não mais
relacionada Com a religião, surgiu no século XIX. Na Rússia, Espanha e, em
menor grau, na Itália, obteve considerável êxito, constituindo, até hoje, um
pesadelo para as autoridades americanas de imigração. Esta versão moderna,
embora anti-religiosa, encerra ainda muito do espírito do protestantismo
primitivo; difere principalmente dele devido ao fato de dirigir contra os
governos seculares a hostilidade que Lutero dirigia contra os Papas.
A subjetividade, uma vez desencadeada, já não podia circunscrevem-se
aos seus limites, até que tivesse seguido seu curso. Na moral, a atitude enfática
dos protestantes, quanto à consciência individual, era essencialmente
anárquica. O hábito e o costume eram tão fortes que, exceto em algumas
manifestações ocasionais, como, por exemplo, a de Münster, os discípulos do
individualismo na ética continuaram a agir de maneira convencionalmente
virtuosa. Mas era um equilíbrio precário. O culto do século XVIII à
"sensibilidade" começou a romper esse equilíbrio: um ato era admirado não
pelas suas boas conseqüências, ou porque estivesse de acordo com um código
moral, mas devido à emoção que o inspirava. Dessa atitude nasceu o culto do
herói, tal como foi manifestado por Carlyle e Nietzsche, bem como o culto
byroniano da paixão violenta, qualquer que esta seja.
O movimento romântico, na arte, na literatura e na política, está ligado a essa
maneira subjetiva de julgar-se os homens, não como membros de uma
comunidade, mas como objetos de contemplação esteticamente encantadores.
Os tigres são mais belos do que as ovelhas, mas preferimos que estejam atrás
de grades. O romântico típico remove as grades e delicia-se com os saltos
magníficos com que o tigre aniquila as ovelhas. Incita os homens a imaginar
que são tigres e, quando o consegue, os resultados não são inteiramente
agradáveis.
Contra as formas mais loucas do subjetivismo nos tempos modernos tem
havido várias reações. Primeiro, uma filosofia de semicompromisso, a
doutrina do liberalismo, que procurou delimitar as esferas relativas ao governo
e ao indivíduo. Isso começa, em sua forma moderna, com Locke, que é tão
contrário ao "entusiasmo" - o individualismo dos anabatistas como à
autoridade absoluta e à cega subserviência à tradição. Uma rebelião mais
extensa conduz à doutrina do culto do Estado, que atribui ao Estado a posição
que o Catolicismo atribuía à Igreja, ou mesmo, às vezes, a Deus. Hobbes,
Rousseau e Hegel representam fases distintas desta teoria, e suas doutrinas se
acham encarnadas, praticamente, em Cromwell, Napoleão e na Alemanha
moderna. O comunismo, na teoria, está muito longe dessas filosofias, mas é
conduzido, na prática, a um tipo de comunidade bastante semelhante àquela e
que resulta a adoração do Estado.
Durante todo o transcurso deste longo desenvolvimento, desde 600 anos
antes de Cristo até aos nossos dias, os filósofos têm-se dividido entre aqueles
que querem estreitar os laços sociais e aqueles que desejam afrouxá-los. A
esta diferença, acham-se associadas outras. Os partidários da disciplina
advogaram este ou aquele sistema dogmático, velho ou novo, chegando,
portanto a ser, em menor ou maior grau, hostis à ciência, já que seus dogmas
não podiam ser provados empiricamente. Ensinavam, quase invariavelmente,
que a felicidade não constitui o bem, mas que a "nobreza" ou o "heroísmo"
devem ser a ela preferidos. Demonstravam simpatia pelo que havia de
irracional na natureza humana, pois acreditavam que a razão é inimiga da
coesão social. Os partidários da liberdade, por outro lado, com exceção dos
anarquistas extremados, procuravam ser científicos, utilitaristas, racionalistas,
contrários à paixão violenta, e inimigos de todas as formas mais profundas de
religião. este conflito existiu, na Grécia, antes do aparecimento do que
chamamos filosofia, revelando-se já, bastante claramente, no mais antigo
pensamento grego. Sob formas diversas, persistiu até aos nossos dias, e
continuará, sem dúvida, a existir durante muitas das eras vindouras.
É claro que cada um dos participantes desta disputa como em tudo que
persiste durante longo tempo - tem a sua parte de razão e a sua parte de
equívoco. A coesão social é uma necessidade, e a humanidade jamais
conseguiu, até agora, impor a coesão mediante argumentos meramente
racionais. Toda comunidade está exposta a dois perigos opostos: por um lado,
a fossilização, devido a uma disciplina exagerada e um respeito excessivo pela
tradição; por outro lado, a dissolução, a submissão ante a conquista
estrangeira, devido ao desenvolvimento da independência pessoal e do
individualismo, que tornam impossível a cooperação. Em geral, as civilizações
importantes começam por um sistema rígido e supersticioso que, aos poucos,
vai sendo afrouxado, e que conduz, em determinada fase, a um período de
gênio brilhante, enquanto perdura o que há de bom na tradição antiga, e não se
desenvolveu ainda o mal inerente à sua dissolução. Mas, quando o mal
começa a manifestar-se, conduz à anarquia e, daí, inevitavelmente, a uma
nova tirania, produzindo uma nova síntese, baseada num novo sistema
dogmático. A doutrina do liberalismo é uma tentativa para evitar essa
interminável oscilação. A essência do liberalismo é uma tentativa no sentido
de assegurar uma ordem social que não se baseie no dogma irracional, e
assegurar uma estabilidade sem acarretar mais restrições do que as necessárias
à preservação da comunidade. Se esta tentativa pode ser bem sucedida,
somente o futuro poderá demonstrá-lo.
produto de dois fatores: um, constituído de fatores religiosos e éticos
herdados; o outro, pela espécie de investigação que podemos denominar
"científica", empregando a palavra em seu sentido mais amplo. Os filósofos,
individualmente, têm diferido amplamente quanto às proporções em que esses
dois fatores entraram em seu sistema, mas é a presença de ambos que, em
certo grau, caracteriza a filosofia.
"Filosofia" é uma palavra que tem sido empregada de várias maneiras,
umas mais amplas, outras mais restritas. Pretendo empregá-la em seu sentido
mais amplo, como procurarei explicar adiante. A filosofia, conforme entendo
a palavra, é algo intermediário entre a teologia e a ciência. Como a teologia,
consiste de especulações sobre assuntos a que o conhecimento exato não
conseguiu até agora chegar, mas, como ciência, apela mais à razão humana do
que à autoridade, seja esta a da tradição ou a da revelação. Todo conhecimento
definido - eu o afirmaria - pertence à ciência; e todo dogma quanto ao que
ultrapassa o conhecimento definido, pertence à teologia. Mas entre a teologia
e a ciência existe uma Terra de Ninguém, exposta aos ataques de ambos os
campos: essa Terra de Ninguém é a filosofia. Quase todas as questões do
máximo interesse para os espíritos especulativos são de tal índole que a
ciência não as pode responder, e as respostas confiantes dos teólogos já não
nos parecem tão convincentes como o eram nos séculos passados. Acha-se o
mundo dividido em espírito e matéria? E, supondo-se que assim seja, que é
espírito e que é matéria? Acha-se o espírito sujeito à matéria, ou é ele dotado
de forças independentes? Possui o universo alguma unidade ou propósito?
Está ele evoluindo rumo a alguma finalidade? Existem realmente leis da
natureza, ou acreditamos nelas devido unicamente ao nosso amor inato pela
ordem? é o homem o que ele parece ser ao astrônomo, isto é, um minúsculo
conjunto de carbono e água a rastejar, impotentemente, sobre um pequeno
planeta sem importância? Ou é ele o que parece ser a Hamlet? Acaso é ele, ao
mesmo tempo, ambas as coisas? Existe uma maneira de viver que seja nobre e
uma outra que seja baixa, ou todas as maneiras de viver são simplesmente
inúteis? Se há um modo de vida nobre, em que consiste ele, e de que maneira
realizá-lo? Deve o bem ser eterno, para merecer o valor que lhe atribuímos, ou
vale a pena procurá-lo, mesmo que o universo se mova, inexoravelmente, para
a morte? Existe a sabedoria, ou aquilo que nos parece tal não passa do último
refinamento da loucura Tais questões não encontram resposta no laboratório.
As teologias têm pretendido dar respostas, todas elas demasiado concludentes,
mas a sua própria segurança faz com que o espírito moderno as encare com
suspeita. 0 estudo de tais questões, mesmo que não se resolva esses
problemas, constitui o empenho da filosofia.
Mas por que, então, - poderíeis perguntar - perder tempo com problemas
tão insolúveis? A isto, poder-se-ia responder como historiador ou como
indivíduo que enfrenta o terror da solidão cósmica. A resposta do historiador,
tanto quanto me é possível dá-la, aparecerá no decurso desta obra. Desde que
o homem se tornou capaz de livre especulação, suas ações, em muitos
aspectos importantes, têm dependido de teorias relativas ao mundo e á vi a
humana, relativas ao bem e ao mal. Isto é tão verdadeiro em nossos dias como
em qualquer época anterior. Para compreender uma época ou uma nação,
devemos compreender sua filosofia e, para que compreendamos sua filosofia,
temos de ser, até certo ponto, filósofos. Há uma relação causal recíproca. As
circunstâncias das vidas humanas contribuem muito para determinar a sua
filosofia, mas, inversamente, sua filosofia muito contribui para determinar tais
circunstâncias. Essa ação mútua, através dos séculos, será o tema das páginas
seguintes.
Há, todavia, uma resposta mais pessoal. A ciência diz-nos o que podemos
saber, mas o que podemos saber é muito pouco e, se esquecemos quanto nos é
impossível saber, tornamo-nos insensíveis a muitas coisas sumamente
importantes. A teologia, por outro lado, nos induz â crença dogmática de que
temos conhecimento de coisas que, na realidade, ignoramos e, por isso, gera
uma espécie de insolência impertinente com respeito ao universo. A incerteza,
na presença de grandes esperanças e receios, é dolorosa, mas temos de
suportá-la, se quisermos viver sem o apoio de confortadores contos de fadas,
Não devemos também esquecer as questões suscitadas pela filosofia, ou
persuadir-nos de que encontramos, para as mesmas, respostas indubitáveis.
Ensinar a viver sem essa segurança e sem que se fique, não obstante,
paralisado pela hesitação, é talvez a coisa principal que a filosofia, em nossa
época, pode proporcionar àqueles que a estudam.
A filosofia, ao contrário do que ocorreu com a teologia , surgiu, na
Grécia, no século VI antes de Cristo. Depois de seguir o seu curso na
antigüidade, foi de novo submersa pela teologia quando surgiu o Cristianismo
e Roma se desmoronou. Seu segundo período importante, do século YI ao
século XIV, foi dominado pela Igreja Católica, com exceção de alguns poucos
e grandes rebeldes, como, por exemplo, o imperador Frederico II (1195-1250).
Este período terminou com as perturbações que culminaram na Reforma. O
terceiro período, desde o século XVII até hoje, é dominado, mais do que os
períodos que o precederam, pela ciência. As crenças religiosas tradicionais
mantêm sua importância, mas se sente a necessidade de que sejam
justificadas, sendo modificadas sempre que a ciência torna imperativo tal
passo. Poucos filósofos deste período são ortodoxos do ponto de vista
católico, e o Estado secular adquire mais importância em suas especulações do
que a Igreja.
A coesão social e a liberdade individual, como a religião e a ciência,
acham-se num estado de conflito ou difícil compromisso durante todo este
período. Na Grécia, a coesão social era assegurada pela lealdade ao Estado-
Cidade; o próprio Aristóteles, embora, em sua época, Alexandre estivesse
tornando obsoleto o Estado-Cidade, não conseguia ver mérito algum em
qualquer outro tipo de comunidade. Variava grandemente o grau em que a
liberdade individual cedia ante seus deveres para com a Cidade. Em Esparta, o
indivíduo tinha tão pouca liberdade como na Alemanha ou na Rússia
modernas; em Atenas, apesar de perseguições ocasionais, os cidadãos
desfrutaram, em seu melhor período, de extraordinária liberdade quanto a
restrições impostas pelo Estado. 0 pensamento grego, até Aristóteles, é
dominado por uma devoção religiosa e patriótica á Cidade; seus sistemas
éticos são adaptados às vidas dos cidadãos e contêm grande elemento político.
Quando os gregos se submeteram, primeiro aos macedônios e, depois, aos
romanos, as concepções válidas em seus dias de independência não eram mais
aplicáveis. Isto produziu, por um lado, uma perda de vigor, devido ao
rompimento com as tradições e, por outro lado, uma ética mais individual e
menos social. Os estóicos consideravam a vida virtuosa mais como uma
relação da alma com Deus do que como uma relação do cidadão com o
Estado. Prepararam, dessa forma, o caminho para o Cristianismo, que, como o
estoicismo, era, originalmente, apolítico, já que, durante os seus três primeiros
séculos, seus adeptos não tinham influência no governo. A coesão social,
durante os seis séculos e meio que vão de Alexandre a Constantino, f oi
assegurada, não pela filosofia nem pelas antigas fidelidades, mas pela força -
primeiro a força dos exércitos e, depois, a da administração civil. Os exércitos
romanos, as estradas romanas, a lei romana e os funcionários romanos,
primeiro criaram e depois preservaram um poderoso Estado centralizado.
Nada se pode atribuir à filosofia romana, já que esta não existia.
Durante esse longo período, as idéias gregas herdadas da época da
liberdade sofreram um processo gradual de transformação. Algumas das
velhas idéias, principalmente aquelas que deveríamos encarar como
especificamente religiosas, adquiriram uma importância relativa; outras, mais
racionalistas, foram abandonadas, pois não mais se ajustavam ao espírito da
época. Desse modo, os pagãos posteriores foram se adaptando á tradição
grega, até esta poder incorporar-se na doutrina cristã.
O Cristianismo popularizou uma idéia importante, já implícita nos
ensinamentos dos estóicos, mas estranha ao espírito geral da antigüidade, isto
é, a idéia de que o dever do homem para com Deus é mais imperativo do que o
seu dever para com o Estado.l A opinião de que "devemos obedecer mais a
Deus que ao homem", como Sócrates e os Apóstolos afirmavam, sobreviveu à
conversão de Constantino, porque os primeiros cristãos eram arianos ou se
sentiam inclinados para o arianismo. Quando os imperadores se tornaram
ortodoxos, foi ela suspensa temporariamente. Durante o Império Bizantino,
permaneceu latente, bem como no Império Russo subseqüente, o qual derivou
do Cristianismo de Constantinopla. Mas no Ocidente, onde os imperadores
católicos foram quase imediatamente substituídos ( exceto em certas partes da
Gália ) por conquistadores bárbaros heréticos, a superioridade da lealdade
religiosa sobre a lealdade política sobreviveu e, até certo ponto, persiste ainda
hoje.
A invasão dos bárbaros pôs fim, por espaço de seis séculos, à civilização
da Europa Ocidental. Subsistiu, na Irlanda, até que os dinamarqueses a
destruíram no século IX. Antes de sua extinção produziu, lá, uma figura
notável, Scotus Erigena. No Império Oriental, a civilização grega sobreviveu,
em forma dissecada, como num museu, até à queda de Constantinopla, em
1453, mas nada que fosse de importância para o mundo saiu de
Constantinopla, exceto uma tradição artística e os Códigos de Direito Romano
de Justiniano.
Durante o período de obscuridade, desde o fim do século V até a metade
do século XI, o mundo romano ocidental sofreu algumas transformações
interessantes. O conflito entre o dever para com Deus e o dever para com o
Estado, introduzido pelo Cristianismo, adquiriu o caráter de um conflito entre
a Igreja e o rei. A jurisdição eclesiástica do Papa estendia-se sobre a Itália,
França, Espanha, Grã-Bretanha e Irlanda, Alemanha, Escandinávia e Polônia.
A princípio, fora da Itália e do sul da França foi muito leve o seu controle
sobre bispos e abades, mas, desde o tempo de Gregório VII ( fins do século XI
), tornou-se real e efetivo. Desde então o clero, em toda a Europa Ocidental,
formou uma única organização, dirigida por Roma, que procurava o poder
inteligente e incansavelmente e, em geral, vitoriosamente, até depois do ano
1300, em seus conflitos com os governantes seculares. O conflito entre a
Igreja e o Estado não foi apenas um conflito entre o clero e os leigos; foi,
também, uma renovação da luta entre o mundo mediterrâneo e os bárbaros do
norte. A unidade da Igreja era um reflexo da unidade do Império Romano; sua
liturgia era latina, e os seus homens mais proeminentes eram, em sua maior
parte, italianos, espanhóis ou franceses do sul. Sua educação, quando esta
renasceu, foi clássica; suas concepções da lei e do governo teriam sido mais
compreensíveis para Marco Aurélio do que para os monarcas contemporâneos.
A Igreja representava, ao mesmo tempo, continuidade com o passado e com o
que havia de mais civilizado no presente.
O poder secular, ao contrário, estava nas mãos de reis e barões de origem
teutônica, os quais procuravam preservar, o máximo possível, as instituições
que haviam trazido as florestas da Alemanha. O poder absoluto era alheio a
essas instituições, como também era estranho, a esses vigorosos
conquistadores, tudo aquilo que tivesse aparência de uma legalidade monótona
e sem espírito. O rei tinha de compartilhar seu poder com a aristocracia feudal,
mas todos esperavam, do mesmo modo, que lhes fosse permitido, de vez em
quando, uma explosão ocasional de suas paixões em forma de guerra,
assassínio, pilhagem ou rapto. é possível que os monarcas se arrependessem,
pois eram sinceramente piedosos e, afinal de contas, o arrependimento era em
si mesmo uma forma de paixão. A Igreja, porém, jamais conseguiu produzir
neles a tranqüila regularidade de uma boa conduta, como a que o empregador
moderno exige e, às vezes, consegue obter de seus empregados. De que lhes
valia conquistar o mundo, se não podiam beber, assassinar e amar como o
espírito lhes exigia? E por que deveriam eles, com seus exércitos de altivos,
submeter-se ás ordens de homens letrados, dedicados ao celibato e destituídos
de forças armadas? Apesar da desaprovação eclesiástica, conservaram o duelo
e a decisão das disputas por meio das armas, e os torneios e o amor cortesão
floresceram. às vezes, num acesso de raiva, chegavam a matar mesmo
eclesiásticos eminentes.
Toda a força armada estava do lado dos reis, mas, não obstante, a Igreja
saiu vitoriosa. A Igreja ganhou a batalha, em parte, porque tinha quase todo o
monopólio do ensino e, em parte, porque os reis viviam constantemente em
guerra. uns com os outros; mas ganhou-a, principalmente, porque, com muito
poucas exceções, tanto os governantes como ó povo acreditavam sinceramente
que a Igreja possuía as chaves do céu. A Igreja podia decidir se um rei devia
passar a eternidade no céu ou no inferno; a Igreja podia absolver os súditos do
dever de fidelidade e, assim, estimular a rebelião. Além disso, a Igreja
representava a ordem em lugar da anarquia e, por conseguinte, conquistou o
apoio da classe mercantil que surgia. Na Itália, principalmente, esta última
consideração foi decisiva.
A tentativa teutônica .de preservar pelo menos uma independência. parcial
da Igreja manifestou-se não apenas na política, mas, também, na arte, no
romance, no cavalheirismo e na guerra. Manifestou-se muito pouco no mundo
intelectual, pois o ensino se achava quase inteiramente nas mãos do clero. A
filosofia explícita da Idade Média não é um espelho exato da época, mas
apenas do pensamento de um grupo. Entre os eclesiásticos, porém -
principalmente entre os frades franciscanos - havia alguns que, por várias
razões, estavam em desacordo com o Papa. Na Itália, ademais, a cultura
estendeu-se aos leigos alguns séculos antes de se estender até ao norte dos
Alpes. Frederico II, que procurou fundar uma nova religião, representa o
extremo da cultura antipapista; Tomás de Aquino, que nasceu no reino de
Nápoles, onde o poder de Frederico era supremo, continua sendo até hoje o
expoente clássico da filosofia papal. Dante, cerca de cinqüenta anos mais
tarde, conseguiu chegar a uma síntese, oferecendo a única exposição
equilibrada de todo o mundo ideológico medieval
Depois de Dante, tanto por motivos políticos como intelectuais, a síntese
filosófica medieval se desmoronou. Teve ela, enquanto durou, uma qualidade
de ordem e perfeição de miniatura: qualquer coisa de que esse sistema se
ocupasse, era colocada com precisão em relação com o que constituía o seu
cosmo bastante limitado. Mas o Grande Cisma, o movimento dos Concílios e
o papado da renascença produziram a Reforma, que destruiu a unidade do
Cristianismo e a teoria escolástica de governo que girava em torno do Papa. N
o período da Renascença, o novo conhecimento, tanto da antigüidade como da
superfície da terra, fez com que os homens se cansassem de sistemas, que
passaram a ser considerados como prisões mentais. A astronomia de
Copérnico atribuiu á terra e ao homem uma posição mais humilde do que
aquela que haviam desfrutado na teoria de Ptolomeu. O prazer pelos f atos
recentes tomou o lugar, entre os homens inteligentes, do prazer de raciocinar,
analisar e construir sistemas. Embora a Renascença, na arte, conserve ainda
uma determinada ordem, prefere, quanto ao que diz respeito ao pensamento,
uma ampla e fecunda desordem. Neste sentido, Montaigne é o mais típico
expoente da época.
Tanto na teoria política como em tudo o mais, exceto a arte, a ordem sofre
um colapso. A Idade Média, embora praticamente turbulenta, era dominada,
em sua ideologia, pelo amor da legalidade e por uma teoria muito precisa do
poder político. Todo poder procede, em última análise, de Deus; Ele delegou
poder ao Papa nos assuntos sagrados, e ao Imperador nos assuntos seculares.
Mas tanto o Papa como o Imperador perderam sua importância durante o
século XV. O Papa tornou-se simplesmente um dos príncipes italianos,
empenhado no jogo incrivelmente complicado e inescrupuloso do poder
político italiano. As novas monarquias nacionais na França, Espanha e
Inglaterra tinham, em seus próprios territórios, um poder no qual nem o Papa
nem o Imperador podiam interferir. O Estado nacional, devido, em grande
parte, à pólvora, adquiriu uma influência sobre o pensamento e o modo de
sentir dos homens, como jamais exercera antes - influência essa que,
progressivamente, destruiu o que restava da crença romana quanto à unidade
da civilização.
Essa desordem política encontrou sua expressão no Príncipe, de
Maquiavel. Na ausência de qualquer princípio diretivo, a política se
transformou em áspera luta pelo poder. O Príncipe dá conselhos astutos
quanto à maneira de se participar com êxito desse jogo. O que já havia
acontecido na idade de ouro da Grécia, ocorreu de novo na Itália renascentista:
os freios morais tradicionais desapareceram, pois eram considerados como
coisa ligada à superstição; a libertação dos grilhões tornou os indivíduos
enérgicos e criadores, produzindo um raro florescimento do gênio mas a
anarquia e a traição resultantes, inevitavelmente, da decadência da moral,
tornou os italianos coletivamente impotentes, e caíram, como os gregos, sob o
domínio de nações menos civilizadas do que eles, mas não tão destituídas - de
coesão social.
Todavia, o resultado foi menos desastroso do que no caso da Grécia, pois
as nações que tinham acabado de chegar ao poder, com exceção da Espanha,
se mostravam capazes de tão grandes realizações como o havia sido a Itália.
Do século XVI em diante, a história do pensamento europeu é dominada pela
Reforma. Reforma foi um movimento complexo, multiforme, e seu êxito se
deve a numerosas causas. De um modo geral, foi uma revolta das nações do
norte contra o renovado domínio de Roma. A religião fora a força que
subjugara o Norte, mas a religião, na Itália, decaíra: o papado permanecia
como uma instituição, extraindo grandes tributos da Alemanha e da Inglaterra,
mas estas nações, que eram ainda piedosas, não podiam sentir reverência
alguma para com os Bórgias e os Médicis, que pretendiam salvar as almas do
purgatório em troca de dinheiro, que esbanjavam no luxo e na imoralidade.
Motivos nacionais motivos econômicos e motivos, religiosos conjugaram-se
para fortalecer a revolta contra Roma. Além disso, os príncipes logo
perceberam que, se a Igreja se tornasse, em seus territórios, simplesmente
nacional, eles seriam capazes de dominá-la, tornando-se, assim, muito mais
poderosos, em seus países, do que jamais o haviam sido compartilhando o seu
domínio com o Papa. Por todas essas razões, as inovações teológicas de
Lutero foram bem recebidas, tanto pelos governantes como pelo povo, na
maior parte da Europa Setentrional.
A Igreja Católica procedia de três fontes. Sua história sagrada era judaica;
sua teologia, grega, e seu governo e leis canônicas, ao menos indiretamente,
romanos. A Reforma rejeitou os elementos romanos, atenuou os elementos
gregos e fortaleceu grandemente os elementos judaicos. Cooperou, assim, com
as forças nacionalistas que estavam desfazendo a obra de coesão nacional que
tinha sido levada a cabo primeiro pelo Império Romano e, depois, pela Igreja
Romana. Na doutrina católica, a revelação divina não terminava na sagrada
escritura, mas continuava, de era em era, através da Igreja, à qual, pois, era
dever do indivíduo submeter suas opiniões pessoais. Os protestantes, ao
contrário, rejeitaram a Igreja como veículo da revelação divina; a verdade
devia ser procurada unicamente na Bíblia, que cada qual podia interpretar à
sua maneira. Se os homens diferissem em sua interpretação, não havia
nenhuma autoridade designada pela divindade que resolvesse tais
divergências. Na prática, o Estado reivindicava o direito que pertencera antes
à Igreja - mas isso era uma usurpação. Na teoria protestante, não devia haver
nenhum intermediário terreno entre a alma e Deus.
Os efeitos dessa mudança foram importantes. A verdade não mais era
estabelecida mediante consulta à autoridade, mas por meio da meditação
íntima. Desenvolveu-se, rapidamente, uma tendência para o anarquismo na
política e misticismo na religião, o que sempre fora difícil de se ajustar à
estrutura da ortodoxia católica. Aconteceu que, em lugar de um único
Protestantismo, surgiram numerosas seitas; nenhuma filosofia se opunha à
escolástica, mas havia tantas filosofias quantos eram os filósofos. Não havia,
no século XIII, nenhum Imperador que se opusesse ao Papa, mas sim um
grande número de reis heréticos. O resultado disso, tanto no pensamento como
na literatura, foi um subjetivismo cada vez mais profundo, agindo primeiro
como uma libertação saudável da escravidão espiritual mas caminhando,
depois, constantemente, para um isolamento pessoal, contrário à solidez
social.
A filosofia moderna começa com Descartes, cuja certeza fundamental é a
existência de si mesmo e de seus pensamentos, dos quais o mundo exterior
deve ser inferido. Isso constitui apenas a primeira fase de um desenvolvimento
que, passando por Berkeley e Kant, chega a Fichte, para quem tudo era apenas
uma emanação do eu. Isso era uma loucura, e, partindo desse extremo, a
filosofia tem procurado, desde então, evadir-se para o mundo do senso comum
cotidiano.
Com o subjetivismo na filosofia, o anarquismo anda de mãos dadas com a
política. Já no tempo de Lutero, discípulos inoportunos e não reconhecidos
haviam desenvolvido a doutrina do anabatismo, a qual, durante algum tempo,
dominou a cidade de Wünster. Os anabatistas repudiavam toda lei, pois
afirmavam que o homem bom seria guiado, em todos os momentos, pelo
Espírito Santo, que não pode ser preso a fórmulas. Partindo dessas premissas,
chegam ao comunismo e à promiscuidade sexual. Foram, pois, exterminados,
após uma resistência heróica. Mas sua doutrina, em formas mais atenuadas, se
estendem pela Holanda, Inglaterra e Estados Unidos; historicamente, é a
origem do "quakerismo". Uma forma mais feroz de anarquismo, não mais
relacionada Com a religião, surgiu no século XIX. Na Rússia, Espanha e, em
menor grau, na Itália, obteve considerável êxito, constituindo, até hoje, um
pesadelo para as autoridades americanas de imigração. Esta versão moderna,
embora anti-religiosa, encerra ainda muito do espírito do protestantismo
primitivo; difere principalmente dele devido ao fato de dirigir contra os
governos seculares a hostilidade que Lutero dirigia contra os Papas.
A subjetividade, uma vez desencadeada, já não podia circunscrevem-se
aos seus limites, até que tivesse seguido seu curso. Na moral, a atitude enfática
dos protestantes, quanto à consciência individual, era essencialmente
anárquica. O hábito e o costume eram tão fortes que, exceto em algumas
manifestações ocasionais, como, por exemplo, a de Münster, os discípulos do
individualismo na ética continuaram a agir de maneira convencionalmente
virtuosa. Mas era um equilíbrio precário. O culto do século XVIII à
"sensibilidade" começou a romper esse equilíbrio: um ato era admirado não
pelas suas boas conseqüências, ou porque estivesse de acordo com um código
moral, mas devido à emoção que o inspirava. Dessa atitude nasceu o culto do
herói, tal como foi manifestado por Carlyle e Nietzsche, bem como o culto
byroniano da paixão violenta, qualquer que esta seja.
O movimento romântico, na arte, na literatura e na política, está ligado a essa
maneira subjetiva de julgar-se os homens, não como membros de uma
comunidade, mas como objetos de contemplação esteticamente encantadores.
Os tigres são mais belos do que as ovelhas, mas preferimos que estejam atrás
de grades. O romântico típico remove as grades e delicia-se com os saltos
magníficos com que o tigre aniquila as ovelhas. Incita os homens a imaginar
que são tigres e, quando o consegue, os resultados não são inteiramente
agradáveis.
Contra as formas mais loucas do subjetivismo nos tempos modernos tem
havido várias reações. Primeiro, uma filosofia de semicompromisso, a
doutrina do liberalismo, que procurou delimitar as esferas relativas ao governo
e ao indivíduo. Isso começa, em sua forma moderna, com Locke, que é tão
contrário ao "entusiasmo" - o individualismo dos anabatistas como à
autoridade absoluta e à cega subserviência à tradição. Uma rebelião mais
extensa conduz à doutrina do culto do Estado, que atribui ao Estado a posição
que o Catolicismo atribuía à Igreja, ou mesmo, às vezes, a Deus. Hobbes,
Rousseau e Hegel representam fases distintas desta teoria, e suas doutrinas se
acham encarnadas, praticamente, em Cromwell, Napoleão e na Alemanha
moderna. O comunismo, na teoria, está muito longe dessas filosofias, mas é
conduzido, na prática, a um tipo de comunidade bastante semelhante àquela e
que resulta a adoração do Estado.
Durante todo o transcurso deste longo desenvolvimento, desde 600 anos
antes de Cristo até aos nossos dias, os filósofos têm-se dividido entre aqueles
que querem estreitar os laços sociais e aqueles que desejam afrouxá-los. A
esta diferença, acham-se associadas outras. Os partidários da disciplina
advogaram este ou aquele sistema dogmático, velho ou novo, chegando,
portanto a ser, em menor ou maior grau, hostis à ciência, já que seus dogmas
não podiam ser provados empiricamente. Ensinavam, quase invariavelmente,
que a felicidade não constitui o bem, mas que a "nobreza" ou o "heroísmo"
devem ser a ela preferidos. Demonstravam simpatia pelo que havia de
irracional na natureza humana, pois acreditavam que a razão é inimiga da
coesão social. Os partidários da liberdade, por outro lado, com exceção dos
anarquistas extremados, procuravam ser científicos, utilitaristas, racionalistas,
contrários à paixão violenta, e inimigos de todas as formas mais profundas de
religião. este conflito existiu, na Grécia, antes do aparecimento do que
chamamos filosofia, revelando-se já, bastante claramente, no mais antigo
pensamento grego. Sob formas diversas, persistiu até aos nossos dias, e
continuará, sem dúvida, a existir durante muitas das eras vindouras.
É claro que cada um dos participantes desta disputa como em tudo que
persiste durante longo tempo - tem a sua parte de razão e a sua parte de
equívoco. A coesão social é uma necessidade, e a humanidade jamais
conseguiu, até agora, impor a coesão mediante argumentos meramente
racionais. Toda comunidade está exposta a dois perigos opostos: por um lado,
a fossilização, devido a uma disciplina exagerada e um respeito excessivo pela
tradição; por outro lado, a dissolução, a submissão ante a conquista
estrangeira, devido ao desenvolvimento da independência pessoal e do
individualismo, que tornam impossível a cooperação. Em geral, as civilizações
importantes começam por um sistema rígido e supersticioso que, aos poucos,
vai sendo afrouxado, e que conduz, em determinada fase, a um período de
gênio brilhante, enquanto perdura o que há de bom na tradição antiga, e não se
desenvolveu ainda o mal inerente à sua dissolução. Mas, quando o mal
começa a manifestar-se, conduz à anarquia e, daí, inevitavelmente, a uma
nova tirania, produzindo uma nova síntese, baseada num novo sistema
dogmático. A doutrina do liberalismo é uma tentativa para evitar essa
interminável oscilação. A essência do liberalismo é uma tentativa no sentido
de assegurar uma ordem social que não se baseie no dogma irracional, e
assegurar uma estabilidade sem acarretar mais restrições do que as necessárias
à preservação da comunidade. Se esta tentativa pode ser bem sucedida,
somente o futuro poderá demonstrá-lo.
sexta-feira, outubro 12, 2007
Alma _ Voltaire
I
É um termo vago, indeterminado, que expressa um princípio desconhecido, porém de efeitos conhecidos que sentimos em nós mesmos. A palavra alma corresponde à animu dos latinos, à palavra que usam todas as nações para expressar o que não compreendem mais que nós. No sentido próprio e literal do latim e das línguas que dele derivam, significa “ o que anima”. Por isso se diz: A alma dos homens, dos animais e das plantas, para significar seu princípio de vegetação e de vida.
Ao pronunciar esta palavra, só nos dá uma idéia confusa, como quando se diz no Gênesis: «Deus soprou no rosto do homem um sopro de vida, e se converteu em alma vivente, a alma dos animais está no sangue, não mateis, pois, sua alma.» De modo que a alma – em sentido geral– se toma pela origem e causa da vida, pela vida mesma. Por isto as nações antigas acreditaram durante muito tempo que tudo morria ao morrer o corpo. Ainda é difícil desentranhar a verdade no caso das histórias remotas, há probabilidade que os egípcios tenham sido os primeiros que distinguiram a inteligência e a alma, e os gregos aprenderam com eles a distinção. Os latinos, seguindo o exemplo dos gregos, distinguiram animus e anima; e nós distinguimos também alma e inteligência. Porém o que constitui o princípio de nossa vida, constitui o princípio de nossos pensamentos? São duas coisas diferentes, ou formam um mesmo princípio? O que nos faz digerir, o que nos produz sensações e nos dá memória, se parece ao que é causa nos animais da
digestão, das sensações e da memória?
Há aqui o eterno objeto das disputas dos homens. Digo eterno objeto, porque carecendo da noção primitiva que nos guie neste exame, teremos que permanecer sempre encerrados num labirinto de dúvidas e de conjeturas.
Não contamos nem com um só apoio onde firmar o pé para chegar ao vago conhecimento do que nos faz viver e do que nos faz pensar. Para possuí-lo seria preciso ver como a vida e o pensamento entram em um corpo. Sabe um pai como
produz a seu filho? Sabe a mãe como o concebe? Pode alguém adivinhar como se agita, como se desperta e como dorme? Sabem alguns como os membros obedecem a sua vontade? Terá descoberto o meio pelo qual as idéias se formam em seu cérebro e saem dele quando o deseja? Débeis autômatos, colocados pela mão invisível que nos governa no cenário do mundo, quem de nós poderia ver o fio que origina nossos movimentos?
Não nos atrevemos a questionar se a alma inteligente é espirito ou matéria; se foi criada antes que nós, se sai do nada quando nascemos; se depois de haver nos animado no mundo, vive, quando nós morremos, na eternidade. Essas questões que parecem sublimes, só são questões de cegos que perguntam a cegos: que é a luz?
Quando tratamos de conhecer os elementos que encerra um pedaço de metal, o
submetemos ao fogo em um crisol. Possuiríamos crisol para submeter a alma? Uns dizem que é espirito; porém, que é espírito? Ninguém sabe, é uma palavra tão vazia de sentido, que nos vemos obrigados a dizer que o espírito não se vê, porque não sabemos dizer o que é. A alma é matéria, dizem outros. Porém, o que é matéria? Só conhecemos algumas de suas aparências e algumas de suas propriedades; e nenhuma destas propriedades e aparências parece ter a menor relação com o pensamento.
Há também quem opine que a alma está formada de algo distinto da matéria.
Porém que provas temos disso? Se funda tal opinião em que a matéria é divisível e pode tomar diferentes aspectos, e o pensamento não. porém, quem teria dito que os primeiros princípios da matéria sejam divisíveis e figuráveis? é muito verossímil que não o sejam; seitas inteiras de filósofos sustentam que os elementos da matéria não têm forma nem extensão. O pensamento não é madeira, nem pedra, nem areia, nem metal, logo o pensamento não pode ser matéria. Mas esses são raciocínios débeis e atrevidos. A gravidade não é metal, nem areia, nem pedra, nem madeira; o movimento, a vegetação, a vida, não são nenhuma dessas coisas; e, sem dúvida, a vida, a vegetação, o movimento e a gravitação são qualidades da matéria. Dizer que Deus não pode conseguir que a matéria pense, é dizer o absurdo mais insolente que se tenha proferido na escola da demência. Não estamos certos de que Deus tenha feito isso; porém se que estamos certos de que poderia fazê-lo. Que importa tudo o que se tenha dito e o que se dirá sobre a alma? Que importa que a tenham chamado entelequia, quintessência, chama ou éter; que a tenham tomado por universal, incriada, transmigrante, etc., etc? Que importam em questões inacessíveis à razão, essas novelas criadas por nossas incertas imaginações? Que importa que os pais da Igreja dos quatro primeiros séculos acreditassem que a alma era corporal? Que importa que Tertuliano, contradizendo-se, decidisse que a alma é corporal, figurada e simples ao mesmo tempo? Teremos mil testemunhos de nossa ignorância, porém nem um só oferece vislumbre da verdade. Como nos atrevemos a afirmar o que é a alma? Sabemos com certeza que existimos, que sentimos e que pensamos. Desejamos ir mais além e caímos em abismo. Submergidos nesse abismo, todavia se apodera de nós a louca temeridade de questionar se a alma, da qual não temos a menor idéia, se criou antes que nós ou ao mesmo tempo que nós, e se perece ou é imortal.
A alma e todos os artigos que são metafísicos, devem ser submetidos
sinceramente aos dogmas da Igreja, porque sem dúvida a revelação vale mais que toda a filosofia. Os sistemas exercitam o espírito, porém a fé o alumia e o guia.
Com freqüência pronunciamos palavras sobre as quais temos idéia muito confusa, e algumas vezes ignoramos o significado. Não está neste caso a palavra alma? Quando a lingüeta ou válvula de um fole está estragado e o ar que entra no ventre do fole sai por algumas das aberturas que tem a válvula, e este não está comprimido pelas duas paletas, e não sai com a violência que se necessita para atiçar o fogo, as criadas dizem: – Está descomposta a alma do fole. Não sabem mais, e essa questão não turva sua tranqüilidade. O jardineiro fala da alma das
plantas, e as cultiva bem, sem saber o que significa esta palavra. Em muitas de nossas manufaturas, os operários dão a qualificação de alma a suas máquinas; e nunca discutem sobre o significado de tal palavra; não ocorre isso com os filósofos.
A palavra alma entre nós, em seu significado geral, serve para denotar o que anima. Nossos antepassados os celtas, deram à alma o nome de seel, do que os ingleses formaram a palavra soul, e os alemães a palavra seel, e provavelmente os antigos teutões e os antigos bretões não disputariam sobre essa palavra. Os gregos distinguiam três classes de alma: a alma sensitiva ou a alma dos sentidos (vê-se aqui porque o Amor, filho de Afrodite, sentiu tão veemente paixão por Psiquê, e porque Psiquê o amou ternamente): o sopro que dá vida e movimento a toda máquina, e que nós traduzimos por espírito; e a terceira classe
da alma que, como nós, chamaram inteligência. Possuímos pois, três almas, sem ter a mais ligeira noção de nenhuma delas. São Tomás de Aquino admite estas três almas, como bom peripatético, e distingue cada uma delas em três partes: uma está no peito, outra em todo o corpo e a terceira na cabeça. Em nossas escolas não se conheceu outra filosofia até o século 18. E desgraçado o homem que tomasse uma dessas almas por outra!
Há, sem dúvida, motivo para este caos de idéias. Os homens entendiam que quando os excitavam as paixões do amor, da cólera o do medo, sentiam certos movimentos nas entranhas. O fígado e o coração foram assinalados como sendo o local das paixões. Quando se medita profundamente, sentimos certa opressão nos órgãos da cabeça, logo a alma intelectual está no cérebro. Sem respirar não é possível a vegetação e a vida; logo, a alma vegetativa está no peito, que recebe o
sopro do ar.
Quando os homens viram em sonhos seus pais e amigos mortos, dedicaram-se a
estudar o que lhes havia aparecido. Não era corpo, porque o havia consumido uma fogueira, o mar o tinha tragado e havia servido de pasto aos peixes. Isso, não obstante, sustinha que algo lhes havia aparecido, posto que o tinham visto; o morto havia lhes falado e o que estava sonhando lhes dirigia perguntas. Com quem haviam conversado dormindo? Se imaginaram que era um fantasma, uma
figura aérea, uma sombra, os manes, uma pequena alma do ar e fogo
extremadamente delicada, que vagava por não sei onde.
Andando o tempo, quando quiseram aprofundar este estudo, convencionaram que tal alma era corporal, e esta foi a idéia que dela teve a antigüidade. Chegou depois Platão, que utilizou essa alma de tal maneira que se chegou a suspeitar que a separou quase completamente da matéria; porém esse problema não se resolveu até que a fé veio iluminar-nos. Em vão os materialistas alegam que alguns pais da Igreja não se expressaram com exatidão. Santo Irineu diz que e alma é o sopro da vida, que só é incorporal se comparada ao corpo dos mortais, porém que conserva a figura de homem para que se a reconheça.
Tertuliano se expressa deste modo: «A corporalidade da alma ressalta no Evangelho; porque se a alma não tivesse corpo, a imagem da alma não teria imagem corpórea». Em vão esse mesmo filósofo refere à visão de uma mulher santa que viu um alma muito brilhante e da cor do ar.
Alegam que Santo Hilário disse, em tempos posteriores: «Não há nada que não seja corporal, nem no céu nem na terra, nem no visível ou invisível; tudo está formado de elementos, e as almas têm sempre uma substância corporal.
Santo Ambrósio, no século 6, disse: «Não conhecemos nada que não seja material, excetuando-se a Santa Trindade.»
A Igreja decidiu, por unanimidade, que a alma é imaterial. Os citados santos incorreram em um erro que era então universal: eram homens, porém não se equivocaram a respeito à imortalidade, porque os Evangelhos evidentemente a anunciam.
Precisamos nos conformar com a decisão da Igreja, porque não possuímos noção suficiente do que se chama espírito puro e do que se chama matéria. O espírito puro é uma palavra que não nos transmite nenhuma idéia; e só conhecemos matéria por alguns de seus fenômenos. a conhecemos tão pouco, que a chamamos substância, e a palavra substância quer dizer o que está embaixo; porém este embaixo está oculto eternamente para nós; é o segredo do Criador em todas partes. Não sabemos como recebemos a vida, nem como a damos, nem
como crescemos nem como digerimos, nem como dormimos, nem como
pensamos, nem como sentimos.
II
Das dúvidas de Locke sobre a alma
O autor do artigo Alma, da Enciclopédia, se guiou escrupulosamente pelas opiniões
de Jaquelet. Porém Jaquelet não nos ensina nada. Ataca a Locke, porque este
modestamente disse: «Quiçá não seremos nunca capazes de conhecer se um ser
material pensa ou não, pela razão de que nos é impossível descobrir por meio da
contemplação de nossas próprias idéias, se Deus teria concedido a qualquer
porção de matéria o poder de conhecer-se e de pensar; ou se uniu a matéria
desse modo preparada uma substância imaterial que pensa. Com relação a nossas
noções, não nos é difícil conceber que Deus pode, se assim lhe compraz,
acrescentar à idéia que temos da matéria, a faculdade de pensar; nem nos é difícil
compreender que possa agregar-lhe outra substância que possua tal faculdade;
porque ignoramos em que consiste o pensamento, e não sabemos tampouco a classe de substância a que o Ser Todo-Poderoso possa conceder esse poder, e que
pode criar em virtude da vontade do Criador. Não encontro contradição em que
Deus, ser pensante, eterno e todo poderoso, dote se quiser, de alguns graus de
sentimento, de perfeição e de pensamento, a certas porções de matéria criada e
insensível, e que nos una a ela quando crer conveniente».
Como acabamos de ver, Locke fala como homem profundo, religioso e modesto.
Pode se dizer que Locke criou a metafísica (assim como Newton criou a física) para
conhecer a alma, suas idéias e suas afeções. Não estudou nos livros, porque estes
poderiam dar instrução errônea; se contentou com se auto-estudar; e depois de
contemplar-se longo tempo, no tratado do entendimento humano apresentou aos
homens o espelho onde se havia contemplado. Em uma palavra, reduziu a
metafísica ao que deve ser: na física experimental da alma.
Conhecidos são os desgostos que lhe proporcionou o manifestar esta opinião, que
em sua época pareceu atrevida. Porém era só a conseqüência da convicção que
tinha da onipotência de Deus e da debilidade do homem. Não assegurou que a
matéria pensa, porém disse que não sabemos bastante para demostrar que é
impossível que Deus agregue o dom do pensamento ao ser desconhecido que
chamamos matéria, depois de ter nos concedido o dom da gravitação e o dom do
movimento, que não são igualmente incompreensíveis.
Locke não foi o único que iniciou esta opinião; indubitavelmente já o abordou
antigüidade, posto que considerava a alma como uma matéria muito delicada, e
por conseqüência, assegurava que a matéria podia sentir e pensar.
Esta foi também a opinião de Gassendi, como se pode ver nas objeções que fez a
Descartes: é verdade, diz Gassendi, que sabeis que pensais, porém não sabeis que
espécie de substância sois. Portanto, ainda que seja conhecida a operação do
pensamento, desconheces o principal de vossa essência, ignorando qual é a
natureza dessa substância, da que o ato de pensar é uma das operações. nisso
pareceis ao cego que, ao sentir o calor dos raios solares e sabendo que a causa é
o sol, acreditara que teria idéia clara e distinta do que é esse astro, porque se lhe
perguntarem que é o sol, poderia dizer: «É uma coisa que aquece». O mesmo
Gassendi, em seu livro titulado Filosofia de Epicuro, repete algumas vezes que
não há evidencia matemática da pura espiritualidade da alma.
Descartes, em uma das cartas que dirigiu a princesa palatina Elisabet, disse:
«Confesso que por meio da razão natural podemos fazer muitas conjeturas
respeito ao alma, e acalentar algumas esperanças, porém não podemos ter
nenhuma segurança». Neste caso, Descartes ataca em suas cartas o que afirma
em seus livros.
Acabamos de ver que os pais da Igreja dos primeiros séculos, acreditando na alma
imortal, acreditavam-na ao mesmo tempo, material. Por isso diziam: «Deus a fez
pensante e pensante a conservará.” Malebranche provou bastante bem que nós não adquirimos nenhuma idéia por nós
mesmos, e que os objetos são incapazes de nos dar. Disto deduzo que provém de
Deus. isto equivale a dizer que Deus é o autor de todas nossas idéias. Seu
sistema forma um labirinto, no qual uma das veredas conduz ao sistema de
Espinosa, outra ao estoicismo e a terceira ao caos.
Depois de disputar muito tempo sobre o espírito e sobre a matéria, acabamos
sempre por não entender. Nenhum filósofo logrou levantar com suas próprias
força o véu que a natureza tem estendido sobre os primeiros princípios das cosas.
Enquanto eles disputam, a natureza obra. III
Da alma das bestas
Antes de admitir o estranho sistema que supõe que os animais são umas
máquinas incapazes de sensação, os homens não acreditaram nunca que as
bestas tivessem alma imaterial, e ninguém foi tão temerário a ponto de se atrever
a dizer que a ostra estava dotada de alma espiritual. Estavam em acordo as
opiniões e convinham que as bestas haviam recebido de Deus sentimento,
memória, idéias, porém não espírito. Ninguém havia abusado do dom de
raciocinar ao ponto de afirmar que a natureza concedeu às bestas todos os órgãos
do sentimento para que não tivessem sentimento. Ninguém havia dito que gritam
quando se as fere, que fogem quando se as persegue, sem sentir dor nem medo.
Não se negava então a onipotência de Deus; reconhecendo que pode comunicar à
matéria orgânica dos animais, o prazer, a dor, a lembrança, a combinação de
algumas idéias: pode dotar a vários deles, como ao macaco, ao elefante, ao cão
de caça, o talento para aperfeiçoar-se nas artes que se lhes ensinam. Porém
Pereyra e Descartes sustentaram que o mundo se equivocava, que Deus dotara
com todos os instrumentos da vida e da sensação aos animais, com o propósito
deliberado de que careceriam de sensação e de vida propriamente dita; e outros
que teriam pretensões de filósofos, com a idéia de contradizer a idéia de
Descartes, conceberam a quimera oposta, dizendo que estavam dotados de
espírito os animais, e que teriam alma os sapos e os insetos.
Entre estas duas loucuras, a primeira que nega o sentimento aos órgãos que o
produz, e a segunda que faz alojar um espírito puro no corpo de uma pulga, houve
autores que se decidiram por um meio termo, que chamaram instinto. E o que é o
instinto? é uma forma substancial, uma forma plástica, é um “não sei quê”. Serei
da sua opinião, quando chameis à maioria das coisas “não sei quê”, quando tua
filosofia seja tão debilitada que acabe em “não sei nada”.
O autor do artigo Alma, publicado na Enciclopédia, diz: «Em minha opinião, a
alma das bestas é formada de uma substância imaterial e inteligente. Porém, de que classe? Deve consistir em um princípio ativo capaz de sensações. Se
refletirmos sobre a natureza da alma das bestas, não nos aparece nenhum motivo
para crer que sua espiritualização as salve do aniquilamento.
É para mim incompreensível poder ter idéia de uma substância imaterial.
Representar-se algum objeto, é ter na imaginação uma imagem dele, e até hoje
ninguém conseguiu pintar o espírito. Concedo que o autor que acabo de citar
entenda conceber pela palavra representar. Porém eu confesso que tampouco a
concebo, como não concebo que se possa aniquilar um alma espiritual, como não
concebo a criação nem a nada, porque ignoro completamente o princípio de todas
as coisas.
Se trato de provar que a alma é um ser real, me contestam dizendo que é uma
faculdade; se afirmo que é uma faculdade como a de pensar, me respondem que
me equivoco, que Deus, dono absoluto da natureza, faz tudo em mim, dirige
todos meus atos e pensamentos; que se eu produzisse meus pensamentos,
saberia que produzo cada minuto, e não sei; que só sou um autômato com
sensações e com idéias, que dependo exclusivamente do ser Supremo, e estou tão
submisso a ele como a argila nas mãos do oleiro.
Confesso, pois, minha ignorância, e que quatro mil volumes de metafísica são
insuficientes para nos ensinar o que é alma.
Um filósofo ortodoxo dizia a um heterodoxo: «Como conseguiste chegar a crer que
por sua natureza a alma é mortal e que só é eterna pela vontade de Deus? –
Porque experimentei, contestou o outro filósofo.–Como experimentaste? Por acaso
morreste? Sim, algumas vezes. Tinha ataques de epilepsia na juventude e
asseguro que caía completamente morto durante algumas horas. Depois não
experimentava nenhuma sensação, nem recordava o que me havia sucedido.
Agora me sucede o mesmo quase todas as noites. Ignoro o momento que durmo,
e durmo sem sonhar. Só por conjeturas posso calcular o tempo que dormi. Estou,
pois, morto por seis horas a cada vinte e quatro; a quarta parte de minha vida». O
ortodoxo sustentou que ele pensava mesmo quando dormia, porém sem saber o
que. O heterodoxo replicou: «Creio que penso sempre na outra vida. Porém
asseguro que raras vezes penso nesta».
O ortodoxo não se equivocava ao afirmar a imortalidade da alma, porque a fé e a
razão demonstram esta verdade: Porém podia equivocar-se ao assegurar que o
homem dormindo pensa sempre. Locke confessava francamente que não pensava
sempre que dormia; e outro filósofo disse: «O homem possui a faculdade de
pensar, porém esta não é sua essência». Deixemos a cada indivíduo a liberdade e
o consumo de estudar-se a si mesmo e de perder-se no labirinto de suas idéias.
Não obstante, é curioso saber que em 1730 houve um filósofo que foi perseguido
por haver confessado o mesmo que Locke, ou seja que não exercitava seu
entendimento todos os minutos do dia e da noite, assim como não se servia sempre dos braços e das pernas. Não só a ignorância da corte o perseguiu, mas
também a ignorância maligna de alguns que pretendiam ser literatos. O que só
produz na Inglaterra algumas disputas filosóficas, produz em França covardes
atrocidades. Um francês foi vítima por seguir Locke.
Sempre houve na lama de nossa literatura alguns miseráveis capazes de vender
sua pluma e atacar até seus mesmos benfeitores. Esta observação parece
impertinente em um artigo que trata da alma; mas não devemos perder nenhuma
ocasião de observar a conduta dos que querem desonrar o glorioso título de
homem de letras, prostituindo seu escasso talento e consciência a um vil
interesse, a uma política quimérica e que fazem traição a seus amigos para adular
os néscios. Não sucedeu nunca em Roma denunciarem Lucrecio por haver posto
em verso o sistema de Epicuro; nem a Cícero por dizer muitas vezes que depois
de morrer não se sente dor, nem acusaram Plínio, nem a Varrão de ter idéias
particulares acerca da Divindade. A liberdade de pensar foi ilimitada em Roma. Os
homens de curtos alcances e temerosos de em França se tem esforçado em afogar
essa liberdade, mãe de nossos conhecimentos e incentivo do entendimento
humano, para conseguir seus fins tem falado dos perigos quiméricos que esta
pode trazer. Não refletiram que os romanos, que gozavam de completa liberdade
de pensar, nem por isso deixaram de ser nossos vencedores e nossos legisladores,
e que as disputas de escola tem tão pouca relação com o governo, como o tonel
de Diógenes teve com as vitorias de Alexandre. Esta lição equivale a uma lição
respeito à alma: quiçá teremos algumas ocasiões de insistir sobre ela.
Ainda adoremos a Deus com toda a alma, devemos confessar nossa profunda
ignorância respeito ao alma, a essa faculdade de sentir e de pensar que devemos
a sua bondade infinita. Confessemos que nossos débeis racioc ínios nada encerram
e nada acrescentam; e deduzamos de isto que devemos empregar a inteligência,
cuja natureza desconhecemos, em aperfeiçoar as ciências, como os relojoeiros
empregam as molas nos relógios, sem saber o que é uma mola.
IV
Sobre a alma e nossas ignorâncias
Fundado nos conhecimentos adquiridos, nos temos atrevido a questionar se a
alma se criou antes que nós, se chega do nada a introduzir-se em nosso corpo, a
que idade vem colocar-se entre uma bexiga e os intestinos, se ali recebe o aporte
algumas idéias, e que idéias são estas; se depois de animar-nos alguns
momentos, sua essência, logo que o corpo morre, vive na eternidade; se sendo
espírito, o mesmo que Deus, é diferente deste ou é semelhante. Essas questões
que parecem sublimes, como dizemos, são as questões que entabulam os cegos
de nascimento respeito da luz.
O que nos tem ensinado os filósofos antigos e os modernos? Nos tem ensinado
que uma criança é mais sábia que eles, porque este só pensa não que pode
conseguir. Até agora a natureza dos primeiros princípios é um segredo do Criador. Em que consiste que os ares arrastam os sons? Como é que alguns de nossos
membros obedecem constantemente a nossa vontade? Que ma é a que coloca as
idéias na memória, as conserva ali como em um registro e as saca quando
queremos e também quando não queremos? Nossa natureza, a do universo e a
das plantas, estão escondidas em um abismo de trevas. O homem é um ser que
obra, que sente e pensa: é isso o todo que sabemos; porém ignoramos o que nos
faz pensar, sentir e obrar. A faculdade de obrar é tão incompreensível para nós
como a faculdade de pensar. É menos difícil conceber que o corpo de barro tenha
sentimentos e idéias que conceber que um ser tenha idéias e sentimentos.
Compara a alma de Arquimedes com a alma de um imbecil: são as duas de uma
mesma natureza? Se é essencial o pensar, pensarão sempre com independência
do corpo, que não poderá obrar sem elas; se pensam por sua própria natureza,
será da mesma espécie a alma que não pode compreender uma regra de
aritmética, que a alma que mediu os céus? Se os órgãos corporais fazem pensar a
Arquimedes, por que um idiota, melhor constituído e mais vigoroso que
Arquimedes, dirigindo melhor e desempenhando com mais perfeição as funções
corporais, não pensa? A isto se contesta que seu cérebro não é tão bom; porém
isso é uma suposição, porque os que assim contestam não sabem. Não se
encontrou nunca diferença alguma nos cérebros dissecados; e é ademais
verossímil que o cerebelo de um tonto se encontre em melhor estado que o de
Arquimedes, que o usou e o fatigou prodigiosamente.
Deduzamos, pois, disto o que antes deduzimos, que somos ignorantes ante os
primeiros princípios.
V
Da necessidade da revelação
O maior beneficio que devemos ao Novo Testamento, consiste em nos ter revelado
a imortalidade da alma. Inútil foi que o bispo Warburton tratara de obscurecer tão
importante verdade, dizendo continuamente que «os antigos judeus desconheciam
esse dogma necessário, e que os saduceus não o admitiam na época de Jesus».
Interpreta a seu modo as palavras que dizem que Cristo pronunciou: «Ignorais
que Deus disse: eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isac e o Deus de Jacó? Logo
Deus não é o Deus dos mortos, e o Deus dos vivos». Atribui à parábola do mau
rico o sentido contrário ao que atribuem todas as igrejas. Sherlock, bispo de
Londres, e outros muitos sábios o refutam; os mesmos filósofos ingleses acham
escandaloso que um bispo anglicano tenha a opinião contrária da Igreja anglicana;
e Warburten, ao se ver contrariado, chama ímpios a ditos filósofos, imitando a
Arlequim, personagem da comedia titulada o Ladrão da Casa, que depois de
roubar e arrojar os móveis pela janela, vendo que na rua um homem levava
alguns, gritou com toda a força de seus pulmões: – Pega ladrão!
Vale mais bendizer a revelação da imortalidade da alma e as das penas e recompensas depois da morte, que a soberba filosofia de homens que semeiam a
dúvida. o grande César não acreditava; disse em pleno Senado, quando para
impedir que matassem a Catilina, expôs seu critério, segundo o que a morte não
deixava no homem nenhum sentimento, e tudo morria com ele. Ninguém refutou
esta opinião.
O império romano estava dividido em duas grandes seitas: a de Epicuro, que
sustinha que a divindade era inútil no mundo, e que a alma perecia com o corpo; e
a dos estóicos, que sustentava ser a alma era uma porção da divindade, a qual
depois da morte do corpo voltava a sua origem, isto é, ao grande todo de onde
havia emanado. Umas seitas acreditavam que a alma era mortal e outras que era
imortal, porém todas elas estavam conformes em fugir das penas e as buscar
recompensas futuras.
Restam todavia bastantes provas de que os romanos tiveram tal crença; e esta
opinião, profundamente gravada nos corações dos heróis e dos cidadãos
romanos, os induzia a matar-se sem o menor escrúpulo, sem esperar que o tirano
os entregasse ao verdugo.
Os homens mais virtuosos de então, que estavam convencidos da existência de
um Deus, não esperavam na outra vida nenhuma recompensa, nem temiam
nenhum castigo. Vemos no artigo titulado Apócrifo, que Clemente, que mais tarde
foi Papa e Santo pôs em dúvida que os primitivos cristãos acreditassem na
segunda vida, e sobre isto consultou a São Pedro em Cesárea. Não cremos que
São Clemente escreveu a história que se lhe atribui; porém essa história prova
que o gênero humano necessitava guiar-se pela revelação. O que neste assunto
nos surpreende é que um dogma tão saudável tenha permitido que cometam
brilhantes crimes os homens que vivem tão pouco tempo e que se vem
comprimidos entre duas eternidades.
VI
As almas dos tolos e dos monstros
Nasce uma criança mal formada e absolutamente imbecil, não concebe idéias e
vive sem elas. Como podemos definir esta classe de animal? Uns doutores dizem
que é algo entre o homem e a besta, outros, que possui um alma sensitiva, porém
não alma intelectual. Come, bebe e dorme, tem sensações, porém não pensa.
Existe para ele a outra vida, ou não existe? Se tem proposto este caso, porém até
hoje não se obteve completa resolução.
Alguns filósofo tem dito que a referida criatura devia ter alma, porque seu pai e
sua mãe a teriam; Porém guiando-nos por este raciocínio, se tivesse nascido sem
nariz, devíamos supor que o teria, porque seu pai e sua mãe tiveram.
Una mulher dá à luz a uma criança que tem o rosto achatado e escuro, um nariz
afilado e pontiagudo, olhos redondos e, apesar disso, o resto do corpo é idêntico ao dos demais mortais. Os pais decidem que tenha batismo, e todo o mundo
acredita que possua uma alma imortal. Porém, se essa mesma ridícula criatura
tem unhas em forma de ponta e a boca em forma de bico, declaram-no monstro,
dizem que não tem alma e não o batizam.
Sabido é que em Londres, em 1726, houve uma mulher que paria cada oito dias
um coelhinho. Sem nenhuma dificuldade, batizavam a dita criança. O cirurgião que
assistia a referida mulher no parto, jurava que esse fenômeno era verdadeiro, e
acreditavam. Porém, que motivo teriam os crédulos para negar que tivessem alma
os filhos de tal mulher? Ela a teria, seus filhos deviam também tê-la. O Ser
Supremo não pode conceder o dom do pensamento e o da sensação ao ser
desfigurado que nasça de uma mulher em forma de coelho, ou mesmo que o que
nasça em figura de homem? A alma que se predisporia a alojar-se no feto dessa
mãe, seria capaz de voltar ao vazio?
Locke observa sobre os monstros, que não deve atribuir-se a imortalidade ao
exterior do corpo, que a configuração nada importa neste caso. A imortalidade não
está mais ligada à forma do rosto ou do tórax, que à configuração da barba o ao
feitio do traje; e pergunta: Qual é a justa medida de deformidade para que se
considere se uma criança tem ou não alma? Qual o grau para ser declarado
monstro?
Que temos de pensar nesta matéria de uma criança que tenha duas cabeças e
que, apesar disto, tenha um corpo bem proporcionado? Uns dizem que tem duas
almas, porque está provido de duas glândulas pineais, e outros contestam
dizendo que não pode ter duas almas quem não tem mais que um peito e um
umbigo.
Se tem questionado tanto sobre a alma humana, que se esta chegasse a examinar
todas, seria vítima de insuportável fastio. Aconteceria o mesmo que ocorreu ao
cardeal de Polignac em um conclave. Seu intendente, cansado de não pode
inteirar nunca das contas da intendência, fez com o cardeal uma viagem a Roma e
se colocou na janela de sua cela, carregando um imenso fardo de papéis. Ficou ali
lendo as contas mais de duas horas, enquanto esperava pela volta de Polignac.
Por fim, vendo que não obteria nenhuma contestação, meteu a cabeça pela janela.
Há duas horas que o cardeal havia saído de sua cela. Nossas almas nos
abandonam antes que seus intendentes se tivessem inteirado do tanto que delas
nos temos ocupado.
VII
Devo confessar que sempre que examino ao infatigável Aristóteles, ao doutor
Angélico e ao divino Platão, tomo por motes estes epítetos que se lhes aplicam.
Parece-me que todos os filósofos se tem ocupado da alma humana, cegos,
charlatães e temerários, que fazem esforços para persuadir-nos de que tem vista
de águia, e vejo que há outros amantes da filosofia, curiosos e loucos, que os acreditam em sua palavra, imaginando, por sugestão, que vêem algo.
Não vacilo em colocar na categoria de mestres de erros Descartes e
Malebranche. Descartes nos assegura que a alma do homem é uma substância,
cuja essência é pensar que pensa sempre, e que se ocupa desde o ventre da mãe
de idéias metafísicas e de ações gerais que esquece em seguida. Malebranche está
convencido de que todo vemos em Deus. Se encontrou partidários, é porque as
fábulas mais atrevidas são as que melhor recebem a débil imaginação do homem.
Muitos filósofos tem escrito a novela da alma; Porém um sábio é o único que tem
escrito modestamente sua história. Compendiarei essa história segundo a
concebo. Compreendo que todo o mundo não estará de acordo com as idéias de
Locke: pode ser que Locke tenha razão contra Descartes e Malebranche, e que se
equivoque sobre Sorbonne; porém eu falo do ponto de vista da filosofia, não do
ponto das revelações da fé.
Só me corresponde pensar humanamente. Os teólogos que decidam respeito do
divino: a razão e a fé são de natureza contrária. Em uma palavra, vou a citar um
extrato de Locke, a quem eu censuraria se fosse teólogo, porém a quem patrocino
como uma hipóteses, como conjetura filosófica humanamente falando. Se trata de
saber o que é a alma.
1º a palavra alma é uma dessas palavras que pronunciamos sem entender, só
entendemos as coisas quando temos idéia delas, não temos idéia da alma, logo
não a compreendemos.
2º Se nos tenha ocorrido chamar alma à faculdade de sentir e pensar, assim como
chamamos vida a faculdade de viver e vontade à faculdade de querer.
Alguns disseram em seguida isto: –O homem é um composto de matéria e de
espírito; a matéria é extensa e divisível, o espírito não é uma coisa nem outra,
logo é de natureza distinta. É uma reunião de dois seres que não criados um para
o outro e que Deus uniu apesar de sua natureza. Apenas vemos o corpo, e
absolutamente não vemos a alma. Esta não tem partes; logo é eterna: tem idéias
puras e espirituais, logo não as recebe da matéria: tampouco as recebe de si
mesma; logo Deus se as dá, logo ela aporta ao nascer a idéia de Deus e do
infinito, e todas as idéias gerais.
Humanamente falando, contesto essas palavras, dizendo que são muito sábios.
Começam concedendo que existe alma, e logo explicam o que deve ser:
pronunciam a palavra matéria e decidem o que a matéria é. Porem eu lhes
explico: não conheceis nem o espírito nem a matéria. Quanto ao espírito, só
concedeis a faculdade de pensar; e enquanto à matéria, compreendeis que esta
não é mais que uma reunião de qualidades, de cores, e de solidez; a essa reunião
chamais matéria, e marcais os limites desta e os da alma antes de estar seguros
da existência de uma e de outra. Ensinais gravemente que as propriedades da matéria são a extensão e a solidez; e
eu os repito modestamente que a matéria tem outras mil propriedades, que nem
vocês nem eu conhecemos. Assegurais que a alma é indivisível e eterna, dando
por certo o que é questionável. Obrais quase o mesmo que o diretor de um colégio
que, não tendo visto um relógio em sua vida, puserem em suas mão de repente
um relógio de repetição inglês. Esse diretor, como bom peripatético, fica surpreso
ao ver a precisão com que as setas dividem e marcam o tempo, e se assombra
quando o botão comprimido pelo dedo faça tocar a hora que a seta marca. O
filósofo não duvida um momento que dita máquina tenha um alma que a dirige e
que se manifesta por meio dos cordas. Demonstra cientificamente sua opinião, e
compara essa máquina com os anjos, que imprimem movimento às esferas
celestes, sustentando em classe uma agradável teses sobre a alma dos relógios,
um de seus discípulos abre o relógio e não vê mais que as rodas e molas, e
mesmo assim, segue sustentando sempre o sistema da alma dos relógios, crendoo
demostrado. Eu sou o estudante que abre o relógio, que se chama homem e que
em vez de definir com atrevimento o que não compreendemos, trata de examinar
por graus o que desejamos conhecer.
Tomemos uma criança desde o momento em que nasce, e sigamos passo a passo
o progresso de seu entendimento. Ensinaram-me que Deus se tomou o trabalho
de criar um alma para que se alojasse no corpo de dita criança quando este
tivesse cerca de seis semanas, e que quando se introduz em seu corpo está
provisão de idéias metafísicas, conhece o espírito, as idéias abstratas e o infinito;
em uma palavra, é sábia. Porém desgraçadamente sai do útero com uma completa
ignorância; passa dezoito meses sem conhecer mais que o peito da nutriz, e
quando chega aos vinte anos, e se pretende que essa alma recorde idéias
científicas que teve quando se uniu a seu corpo, é muitas vezes tão obtusa, que
nem sequer pode conceber nenhuma de aquelas idéias. O mesmo dia que a mãe
pare a citada criança com sua alma, nascem na casa um cão, um gato e um
canário. ao cabo de dezoito meses, o perro é excelente caçador, ao ano o canário
canta muito bem, e o gato ao cabo de seis semanas possui todos os atrativos que
deve possuir e a criança, ao cumprir quatro anos, não sabe nada. Suponho que eu
seja um homem grosseiro, que tenha presenciado tão prodigiosa diferença e que
não tenha visto nunca uma criança; desde logo acredito que o gato, o cão e o
canário, são criaturas muito inteligentes, e que a criança é um autômato. Porém
pouco a pouco vou percebendo que a criança tem idéias, memória e as mesmas
paixões que esses animais, e então compreendo que é uma criatura razoável como
elas. Comunica-me diferentes idéias por meio das palavras que aprendi, como o
cão por seus distintos gritos me faz conhecer suas diversas necessidades. Percebo
que aos sete ou oito anos a criança combina em seu cérebro quase tantas idéias
como o cão de caça no seu, e que por fim, passando os anos consegue adquirir
grande número de conhecimentos Então que devo pensar dele? Que é de uma
natureza completamente diferente. Não posso crer porque vocês vêem um imbecil
ao lado de Newton, e sustentam que um e outro são da mesma natureza, com a
única diferença do mais ao menos. Encontro entre uma criança e um cão muitos
mais pontos de contato que encontro entre o homem de talento e o homem absolutamente imbecil Que opinião tens, pois, dessa natureza? A que todos os
povos tiveram antes que a ciência egípcia trouxesse a idéia de espiritualidade, de
imortalidade da alma Até suspeitarei, com aparências de verdade, que
Arquimedes e um tolo são da mesma espécie, ainda que de gênero diferente; que
a oliveira e o grano de mostarda estão formados pelos mesmos princípios, ainda
que aquela seja um árvore grande e esta uma planta pequena. Crerei que Deus
concedeu porções de inteligência às porções de matéria organizadas para pensar,
que a matéria está dotada de sensações proporcionadas de acordo com a finura de
seus sentidos e que estes proporcionam a medida de nossas idéias. Crerei que a
ostra tem menos sensações e menos sentido, porque tendo a alma dentro da
concha, os cinco sentidos são inúteis para ela. Há muitos animais que só estão
dotados de dois sentidos; nós temos cinco, e por certo que são muito poucos. É de
crer que em outros mundos existam outros animais que estejam dotados de vinte
o de trinta sentidos e outras espécies muito mais perfeitas que tenham muitos
mais.
Esta parece a maneira mais lógica de raciocinar, quero dizer, de suspeitar e
adivinhar. Indubitavelmente passou muito tempo antes que os homens fossem
bastante engenhosos para inventar um ser desconhecido que está em nós, que
nos faz obrar, que não é completamente nós, e que vive depois que nós
morremos. Desse modo se chegou por graus a conceber idéia tão atrevida. No
princípio, a palavra alma significou vida, e era comum para nós e para os demais
animais; logo nosso orgulho nos fez suspeitar que a alma só correspondia ao
homem, e então inventamos uma forma substancial para as demais criaturas: o
orgulho humano pergunta em que consiste a faculdade de aperceber-se e de
que se chama alma no homem e instinto no bruto. Elucidarei essa questão quando
os físicos me ensinem o que é a luz, o som, o espaço, o corpo e o tempo. Repetirei
com o sábio Locke: a filosofia consiste em deter-se quando a tocha da física não
nos alumia.
Observo os efeitos da natureza; Porém confesso que, como vocês, tampouco
conheço os primeiros princípios. Tudo se reduz a que não devo atribuir a muitas
causas, e muito menos a causas desconhecidas, o que posso atribuir a uma causa
conhecida: posso atribuir a meu corpo a faculdade de pensar e de sentir, logo não
devo buscar a faculdade de sentir e de pensar no que se chama alma ou espírito,
do que não tenho a menor idéia. Os sublevais contra esta proposição, e creéis que
é religiosidade atrever -se a dizer que o corpo possa pensar. Porém que
contestarias –responderia Locke,– se os dissesse que vocês sois também culpáveis
de irreligião, porque se atrevem a limitar o poder de Deus? Quem, sem ser ímpio,
pode assegurar que é impossível para Deus dotar à matéria da faculdade de sentir
e de pensar? Sois ao mesmo tempo débeis e atrevidos, assegurais que a matéria
não pensa, unicamente porque não concebeis que a matéria possa pensar.
Grandes filósofos, que decidis sobre o poder de Deus, e ao mesmo tempo
concedeis que pode Deus converter uma pedra em um anjo (Mateus, cap III, vers.
9.), não compreendeis que segundo suas mesmas teorias e no citado caso, Deus concederia à pedra a faculdade de pensar? Se a matéria da pedra desaparecera,
não seria pedra, seria anjo. De qualquer parte que questioneis, os vereis
obrigados a confessar duas coisas, sua ignorância e o poder imenso do Criador:
sua ignorância nega que a matéria possa pensar, e a onipotência do Criador nos
demonstra que lhe é possível conseguir que a matéria pense.
Sabendo que a matéria não perece, não deveis negar a Deus o poder de conservar
nessa mesma matéria a melhor das qualidades de que a dotou. A extensão
subsiste sem corpo por si mesma, já que há filósofos que acreditam no vazio; os
acidentes subsistem independentes da substância para os cristãos que acreditam
na substanciação. Dizeis que Deus não pode fazer nada que implique contradição,
porém para encontrar esta se necessita saber muito mais do que sabemos; e
nesta matéria só sabemos que temos corpo e que pensamos. Alguns que
aprenderam na escola a não duvidar, e que tomam por oráculos os silogismos que
nelas lhes ensinaram e as superstições que aprenderam por religião, tem a Locke
por ímpio perigoso. Devemos fazer-lhes compreender o erro em que incorrem e
ensinar-lhes que as opiniões dos filósofos jamais prejudicaram à religião. Está
provado que a luz provém do sol, e que os planetas giram ao redor desse astro:
por isto não se lê com menos fé na Bíblia que a luz se formou antes do sol, e que
o sol parou ante a aldeia de Gabão. Está demostrado que o arco-íris se forma com
a chuva e por isso não se deixa de respeitar o texto sagrado, que disse que Deus
pôs o arco-íris nas nuvens, depois do dilúvio, como sinal de que já não haveria
mais inundações.
Os mistérios da Trindade e da Eucaristia, que contradiz nas demonstrações da
razão, não por isso deixam de reverencia-los os filósofos católicos, que sabem que
a razão e a fé são de diferente natureza. A idéia dos antípodas foi condenada pelos
papas e os concílios; e logo outros papas reconheceram os antípodas, aonde
levaram a religião cristã, cuja destruição acreditaram segura no caso de poder
encontrar um homem, que, como se dizia então, tivesse a cabeça abaixo e os pies
acima, com relação a nós, e que, como disse Santo Agostinho, tivesse caído do
céu.
VIII
Suponho que há em uma ilha uma dúzia de filósofos bons, e que em essa ilha não
tem visto mais que vegetais. Esta ilha, e sobretudo os doze filósofos bons, são
difíceis de encontrar; porém permita-me esta ficção. Admiram a vida que circula
pelas fibras das plantas, que parece que se perde e se renova em seguida; e não
compreendendo bem como as plantas nascem, como se alimentam e crescem,
chamam a estas operações alma vegetativa. «Que entendeis por alma vegetativa?
– É uma palavra, respondem, que serve para explicar a mola desconhecida que
move a vida das plantas. – Porém não compreendeis, lhes replica um mecânico,
que esta a desenrola os pesos, as alavancas, as rodas e as polias?– Não,
replicarão ditos filósofos; em sua vegetação há algo mais que movimentos
ordinários; existe em todas as plantas o poder secreto de atrair o sumo que as nutre: e esse poder, que não pode explicar nenhum mecânico, é um dom que
Deus concedeu à matéria, cuja natureza nos é desconhecida». Depois dessa
questão, os filósofos descobrem os animais que há na ilha, e logo de examiná-los
atentamente, compreendem que há outros seres organizados como os homens.
Esses seres é indubitável que tem memória, conhecimento, que estão dotados
das mesmas paixões que nós, que nos fazem compreender suas necessidades, e
como nós, perpetuam sua espécie. Os filósofos dissecam alguns animais, lhes
encontram coração e cérebro, e exclamam: « O autor dessas máquinas, que não
cria nada inútil, lhes tivesse concedido todos os órgãos do sentimento com o
propósito de que não sentissem? Seria absurdo acreditar nisso. Encerram algo que
chamaremos também alma, na falta de outra expressão mais própria algo que
experimenta sensações e que em certa medida tem idéias. Porém qual é esse
princípio? É diferente da matéria? É espírito puro? É um ser intermediário entre a
matéria, que apenas conhecemos, e entre o espírito puro, que nos é
completamente desconhecido? É uma propriedade que Deus concedeu à matéria
orgânica?»
Os filósofos, para estudar essa matéria, fazem experimentos com os insetos e os
lagartos; cortam-nos, dividindo-os em muitas partes, e ficam surpresos ao ver que
ao passar algum tempo nascem cabeças nas partes cortadas. Ou mesmo que o
animal se reproduz, em sua própria destruição encontra o meio de multiplicar-se.
Há muitas almas que estão esperando para animar partes reproduzidas. Parecemse
com árvores das quais se cortam ramos e, plantando-os, se reproduzem. Essas
árvores têm muitas almas? Não parece possível. Logo, é provável que a alma das
bestas seja de outra espécie que as que chamamos de alma vegetativa nas
plantas, que seja uma faculdade de ordem superior que Deus concedeu a certas
porções de matéria para dar-nos outra prova de seu poder e outro motivo para
adorá-lo.
Se ouvisse este raciocínio de um homem violento, lhe diria: «Sois um malvado
merece que o queime o corpo para salvar as almas, porque negais a imortalidade
da alma do homem». Os filósofos, ao ouvir isso, se olhariam com surpresa; e
depois, um deles contestaria com suavidade ao homem violento: Por que acreditas
que devemos arder em uma fogueira e que o induzo a supor que abriguemos nós
o conhecimento de que é mortal vossa alma cruel? – Porque abrigais a crença de
que Deus concedeu aos brutos, que estão organizados como nós, a faculdade de
ter sentimentos e idéias; e como a alma das bestas morre com seus corpos,
acreditas também que o mesmo morre a alma dos homens. Um dos filósofos
replicaria:
–Não temos a segurança de que o que chamamos de alma nos animais se pareça
quando esses deixam de viver; estamos persuadidos que a matéria não perece, e
supomos que Deus haja dotado os animais de algo que pode conservar, se esta é
a vontade divina, a faculdade de ter idéias. Não asseguramos que isto suceda,
porque não é próprio de homens ser tão confiados; Porém não nos atrevemos a
pôr limites ao poder de Deus. Dizemos apenas que é provável que as bestas, que são matéria, tenham recebido um tanto de inteligência. Descobrimos todos os dias
propriedades da matéria, que antes de descobri-las não tínhamos idéia de que
existiram. Começamos definindo a matéria, dizendo que era uma substância que
teria extensão; logo reconhecemos que também teria solidez, e mais tarde
tivemos que admitir que a matéria possui uma força que chamamos força de
inércia, e ultimamente nos surpreendeu a nós mesmos ter que confessar que a
matéria gravita. Ao avançar em nossos estudos, nos vimos obrigados a reconhecer
seres que se parecem em algo à matéria, e que, contudo, carecem dos atributos
de que a matéria está dotada. O fogo elementar, por exemplo, obra sobre nossos
sentidos como os demais corpos; porém não tem a um centro comum como estes;
pelo contrario, se escapa do centro em linhas retas por todas partes; e não parece
que obedeça às leis de atração e de gravitação como os outros corpos. A óptica
tem mistérios que só podemos explicar atrevendo-nos a supor que os raios da luz
se compenetram. Efetivamente, há algo na luz que a distingue da matéria
comum: parece que a luz seja um ser intermediário entre os corpos e outras
espécies de seres que desconhecemos. é verossímil que essas outras espécies de
seres sejam o ponto intermediário que conduza até outras criaturas, e que assim
sucessivamente exista uma cadeia de substâncias que se elevem até o infinito.
Essa idéia nos parece digna da grandeza de Deus, se há alguma idéia humana
digna dela. Entre essas substâncias pôde Deus escolher uma para alojá-la em
nossos corpos, e é a que nós chamamos alma humana. Os livros santos nos
ensinam que essa alma é imortal, e a razão está nisso de acordo com a revelação:
nenhuma substância perece: as formas se destroem, o ser permanece. não
podemos conceber a criação de uma substância; tampouco podemos conceber
seu aniquilamento. Porém nos atrevemos a afirmar que o Senhor absoluto de
todos os seres pode dotar de sentimentos e de percepções ao ser que se chama
matéria. Estais seguro de que pensar é a essência de sua alma, porém nós não
estamos; porque quando examinamos um feto nos custa grande trabalho crer que
sua alma teve muitas idéias em sua envoltura materna, e duvidamos que em seu
sonho profundo, em sua completa letargia, tenha podido dedicar-se à meditação.
Por isso nos parece que o pensamento possa consistir não na essência do ser
pensante, senão no presente que o Criador fez a esses seres que chamamos
pensadores; e tudo isto nos faz suspeitar que se Deus quisesse, poderia outorgar
esse dom a um átomo, conservá-lo o destruí-lo, segundo fosse sua vontade. A
dificuldade consiste menos em adivinhar como a matéria pode pensar, que em
adivinhar como pensa uma substância qualquer. Só concebemos idéias, porque
Deus as quis dar. Por que o empenho em se opor a que as tenha concedido às
demais espécies? Atrevem-se a crer que sua alma seja da mesma classe que as
substâncias que estão mais próximas da divindade? Há motivo para suspeitar que
estas sejam de ordem superior e, portanto, Deus lhes haja concedido uma
maneira de pensar infinitamente mais formosa; assim como concedeu quantidade
muito limitada de idéias aos animais, que são de um ordem inferior aos homens.
Não sei como vivo nem como dou a vida, e querem que saiba como concebo
idéias! A alma é um relógio que Deus nos concedeu para dirigirmos, porém não
nos explicou a maquinaria de que o relógio se compõe. De tudo quanto digo não é possível inferir que a alma humana seja mortal. Em
resumo: pensamos o mesmo que vos sobre a imortalidade que a fé nos anuncia;
porém somos demasiado ignorantes para poder afirmar que Deus não tenha poder
para conceder a faculdade de pensar ao ser que Ele queira. Limitais o poder do
Criador, que é sem limites, e nós o estendemos até onde alcança sua existência.
Perdoe-nos que o cremos onipotente, e nós os perdoaremos que restrinjais seu
poder. Sem dúvida sabeis tudo o que pode fazer e nós ignoramos. Vivamos como
irmãos, adorando tranqüilamente ao Pai comum. Só temos de viver um dia,
vivamos em paz, sem proporcionarmos questões que se decidirão na vida
imortal».
O homem brutal, não encontrando nada que replicar aos filósofos, incomodandose,
falou e disse muitas bobagens. Os filósofos se dedicaram durante algumas
semanas a ler história, e depois deste estudo, eis aqui o que disseram àquele
bárbaro indigno de estar dotado de alma imortal:
«Temos lido que na antigüidade havia tanta tolerância como em nossa época, que
nela se encontram grandes virtudes, e que por suas opiniões não perseguiam aos
filósofos. Por que, pois, pretendeis que nos condenem ao fogo pelas opiniões que
professamos? Acreditavam na antigüidade que a matéria era eterna; porém os
que supunham que era criada, não perseguiram aos que não acreditavam. Dissese
então que Pitágoras, em uma vida anterior, havia sido galo, que seus pais
haviam sido cervos, e apesar disto, sua seita foi querida e respeitada em todo o
mundo. Os estóicos reconheciam um Deus mais o menos semelhante ao que
admitiu depois temerariamente Espinosa; o estoicismo, sem dúvida, foi a seita
mais acreditada e a mais fecunda em virtudes heróicas. Para os epicuristas, os
Deuses eram semelhantes a nossos cônegos e sua indolente gordura sustentava
sua divindade, e tomavam em paz o néctar e a ambrosia sem imiscuir-se em
nada. Os epicuristas ensinavam a materialidade e a mortalidade da alma, porém
não por isso deixaram de ter-lhes considerações, e eram admitidos a
todos os empregos.
Os platônicos não acreditavam que Deus se tivesse dignado criar o homem por si
mesmo; diziam que havia confiado este encargo aos gênios, que ao desempenhar
sua tarefa cometeram muitas bobagens. O Deus dos platônicos era um obreiro
sem defeitos, porém que empregou para criar o homem discípulos muito
incompetentes. Não por isso a antigüidade deixou de apreciar a escola de Platão.
Numa palavra: quantas seitas conheceram os gregos e os romanos, teriam
distintos modos de opinar sobre Deus, sobre a alma, sobre o passado e sobre o
porvir; e nenhuma dessas seitas foi perseguida. Todas essas seitas se
equivocavam, porém viveram em amistosa paz, e isto é o que não alcançamos a
compreender, porque hoje vemos que a maior parte dos debatedores são
monstros e os da antigüidade eram verdadeiros homens.
Se desde os gregos e os romanos queremos remontar às nações mais antigas,
podemos fixar a atenção nos judeus. Esse povo que foi supersticioso, cruel, ignorante e miserável, sabia, sem dúvida, honrar aos fariseus, que acreditavam na
fatalidade do destino e na metempsicose. Respeitava também aos saduceus, que
negavam em absoluto a imortalidade da alma e a existência dos espíritos,
fundando-se na lei de Moisés, que não falou nunca de penas nem de recompensas
depois da morte. Os essênios, que acreditavam também na fatalidade, e nunca
sacrificavam vítimas no templo, eram mais respeitados todavia que os fariseus e
saduceus. Nenhuma dessas opiniões perturbou nunca o governo do Estado.
Devemos, pois, imitar esses louváveis exemplos; devemos pensar em alta voz, e
deixar que pensem o que quiserem os demais. Sereis capaz de receber
cortesmente a um turco que acredite que Maomé viajou para a lua, e desejais
esquartejar a um irmão seu porque acredita que Deus pode dotar de inteligência a
todas as criaturas?»
Assim falou um dos filósofos; e outro completou: – «Acredite, não há exemplo de
nenhuma opinião filosófica que prejudique à religião de nenhum povo. Os
mistérios podem contradizer as demonstrações científicas; nem por isso deixam de
respeitá-los os filósofos cristãos, que sabem que os assuntos da razão e da fé são
de diferente natureza. Sabeis por que os filósofos não lograrão nunca formar uma
seita religiosa? Pois não a formarão porque carecem de entusiasmo. Se dividimos
o gênero humano em vinte partes, compõem as dezenove os homens que se
dedicam a trabalhos manuais, e quiçá estes ignorarão sempre que existiu Locke.
Na outra parte, se encontram poucos homens que param a ler, e entre os que
lêem há vinte que só lêem novelas para cada um que estuda filosofia. É muito
exíguo o número dos que pensam; e estes não se ocupam em perturbar o mundo.
Não jogariam a maçã da discórdia em sua pátria Montaigne, Descartes, Gassendi,
Bayle, Espinosa, Hobbes, Pascal, Montesquieu, nem nenhum dos homens que tem
honrado a filosofia e a literatura. A maior parte dos que perturbaram seu país
foram teólogos, que ambicionaram ser chefes de seita ou ser de partido. Todos os
livros de filosofia moderna juntos não produziram no mundo tanto ruído como
produziu em outro tempo a disputa que tiveram os franciscanos sobre a forma que
devia dar-se a suas mangas e a seus capuchões».
IX
Da antigüidade do dogma da imortalidade da alma
O dogma da imortalidade da alma é a idéia mais consoladora e ao mesmo tempo
mais repressora que o espírito humano pode conceber. Esta agradável filosofia foi
tão antiga no Egito como suas pirâmides; e antes dos egípcios, a conheceram os
persas. Zoroastro, que cita o Sadder, quando Deus ensina a Zoroastro o local
destinado para receber o castigo, local que se chamava Dardarot no Egito, Hades
e Tártaro em Grécia, e nós temos traduzido imperfeitamente em nossas línguas
modernas pela palavra inferno. Deus ensina a Zoroastro no local destinado aos
castigos, a todos os maus reis, a um dos quais faltava um pé, e Zoroastro
perguntou por que razão. Deus respondeu que esse rei só havia feito uma boa
ação em toda sua vida, e esta ação consistia em haver aproximado com o pé uma
gamela que não estava bastante próxima a um pobre burrico que morria de fome. Deus levou ao céu o pé do rei malvado, e deixou no inferno o resto de seu corpo.
Dita fábula, que nunca se repetirá bastante, demonstra como era na remota
antigüidade a opinião sobre a segunda vida. Os índios também teriam esta
opinião, e sua metempsicoses o prova. Os chineses reverenciavam as almas de
seus antepassados; e esses povos fundaram poderosos impérios muito tempo
antes que os egípcios.
Ainda que seja antigo o império de Egito, não é tanto como os impérios do Ásia; e
naquele e nestes, a alma subsistia depois da morte do corpo. Verdade é que todos
esses povos, sem exceção, supunham que a alma teria forma etérea, sutil, e era
imagem do corpo. A palavra sopro a inventaram muito depois os gregos. Porém
não se pode negar que acreditaram que era imortal uma parte de nós mesmos. Os
castigos e as recompensas na outra vida, formaram os cimentos da antiga
teologia.
Ferecides foi o primeiro grego que acreditou que as almas viviam uma eternidade,
porém não foi o primeiro que disse que as almas sobreviviam aos corpos. Ulisses,
que viveu muito tempo antes que Ferecides, havia visto as almas dos heróis nos
Infernos; porém que as almas fossem tão antigas como o mundo, foi uma opinião
que nasceu no Oriente e que Ferecides difundiu no Ocidente. Não creio que exista
um só sistema moderno que não se encontre nos povos antigos. Os edifícios
atuais temos construído com os escombros da antigüidade.
X
Seria um magnífico espetáculo poder ver a alma. A máxima Conhece-te a ti
mesmo é um excelente preceito, mas preceito que só Deus pode praticar; pois,
que mortal pode compreender sua própria essência?
Chamamos alma ao que anima; porém não podemos saber mais dela, porque
nossa inteligência tem limites. As três quartas partes do gênero humano não se
ocupam disto; e a quarta busca, inquire, porém não encontrou nem encontrará.
O homem vê uma planta que vegeta, e disse que tem alma vegetativa; observa
que os corpos têm e dão movimento, e a isto chama força: vê que seu cão de caça
aprende o ofício, e supõe que tem alma sensitiva, instinto; tem idéias combinadas,
e a esta combinação chama espírito. Porém que entendes tu por essas palavras?
Indubitavelmente a flor vegeta; porém existe realmente um ser que se chame
vegetação? Um corpo rechaça a outro, porém possui dentro de si um ser distinto
que se chama força? O cão te traz uma perdiz, porém vive nele um ser que se
chama instinto? Todos os animais vivem; logo encerram dentro de si um ser, uma
forma substancial que é a vida? Se um tulipa puder falar e te disser: a vegetação
e eu somos seres que formamos um conjunto, não te enganaria a tulipa?
Vamos ver o que sabes e do que estás seguro: sabes que andas com os pés, que
digeres com o estômago, que sentes em todo o corpo, e que pensas com a cabeça. Vejamos se o único auxilio da razão pode proporcionar bastantes dados
para deduzir, sem um apoio sobrenatural, que tens alma.
Os primeiros filósofos, tanto caldeus como egípcios, disseram: é indispensável que
haja dentro de nós algo que produza pensamentos; esse algo deve ser muito sutil,
deve ser um sopro, deve ser um éter, uma quintessência, uma entelequia, um
nome, uma harmonia. Segundo o divino Platão, é um composto do mesmo e do
outro. «Constituem-no os átomos que pensam em nós», disse Epicuro depois de
Demócrito. Porém como um átomo pode pensar? Confessa que não sabes.
A opinião mais aceitável é sem dúvida a de que a alma é um ser imaterial, porém
indubitavelmente concebem os sábios o que é um ser imaterial? – Não, contestam
estes, porém sabemos que por natureza pensa. – E por onde o sabeis? –
Sabemos, porque pensa.– Parece que sois tão ignorantes como Epicuro. É natural
que uma pedra caia, porque cai; porém eu pergunto, quem a faz cair? –Sabemos
que a pedra não tem alma; sabemos que uma negação e uma afirmação não são
divisíveis, porque não são partes da matéria. –Sou de sua opinião; porém a
matéria possui qualidades que não são materiais, nem divisíveis, como a
gravitação: a gravitação não tem partes, não é, pois, divisível. A força motriz dos
corpos tampouco é um ser composto de partes. A vegetação dos corpos orgânicos,
sua vida, seu instinto, não constituem seres a parte, seres divisíveis; não podeis
dividir em dois a vegetação de uma roupa, a vida de um cavalo, o instinto de um
cão, ou mesmo que não podes dividir em duas uma sensação, uma negação ou
uma afirmação. O argumento que sacais da indivisibilidade do pensamento não
prova nada.
Que idéia tens da alma? Sem revelação, só podes saber que existe em seu interior
um poder desconhecido que o faz sentir e pensar. Porém esse poder de sentir e de
pensar, é o mesmo poder que o faz digerir e andar? Tens que confessar que não,
porque ainda que o entendimento diga ao estômago: digere, o estômago não
digerirá se está enfermo e se o ser imaterial manda aos pés que andem, estos não
andarão se tem gota. Os gregos compreenderam que o pensamento não tem
relação muitas vezes com o jogo dos órgãos, e dotaram os órgãos da alma animal,
e os pensamentos de um alma mais fina. Porém a alma do pensamento, em
muitas ocasiões, depende da alma animal. A alma pensante ordena às manos que
tomem, e tomam, porém não disse ao coração que bata, nem ao sangue que
corra, nem ao quilo que se forme, e todos esses atos se realizam sem sua
intervenção. Vê-se aqui almas que são muito pouco donas de sua casa.
Disto deve deduzir-se que a alma animal não existe, o que consiste no movimento
dos órgãos; e ao mesmo tempo há que concordar que ao homem não lhe abastece
sua débil razão nenhuma prova de que a outra alma exista.
Vejamos agora os vãos sistemas filosóficos que se tem estabelecido respeito ao
alma. Um deles sustenta que a alma do homem é parte da substância do mesmo
Deus. Outro que é parte do Grande Todo. Há sistema que assegura que a alma está criada para toda a eternidade. Há outro que assegura que a alma foi feita e
não criada. Vãos filósofos asseguram que Deus forma as almas à medida que as
necessita, e que chegam no instante da copulação: outros afirmam que se alojam
no corpo com os ânimos seminais. Filósofo houve que disse que se equivocavam
todos os que o haviam precedido, assegurando que a alma espera seis semanas
para que esteja formado o feto, e então toma possessão da glândula pineal;
porém que se encontra algum gérmen falso, sai do corpo e espera melhor ocasião.
A última opinião consiste em dar ao alma por morada o corpo caloso; este é o
local que determina Peyronie.
São Tomas em sua questão 75 e seguintes, diz: «que a alma é uma forma que
subsiste per se, que está toda em tudo, que sua essência difere de seu poder,
que existem três almas vegetativas: a nutritiva, a aumentativa e a generativa;
que a memória das coisas espirituais é espiritual, e a memória das corporais
corporal; que a alma razoável é uma forma imaterial quanto às operações, e
material quanto ao ser» Entendeste algo? Pois São Tomas escreveu duas mil
páginas tão claras como esta. Por isto, sem dúvida, o chamam o anjo da escola.
Não se tem inventado menos sistemas para o corpo, para explicar como ouvirá
sem ter ouvidos, como olhará sem ter nariz e como tocará sem ter mãos; em que
corpo se alojará em seguida, de que modo o eu, a identidade da mesma pessoa há
de subsistir, como a alma do homem que se tornou imbecil à idade de quinze
anos, e morreu imbecil aos setenta, voltará a unir o fio das idéias que teve na
idade da puberdade e por que meio um alma, a cujo corpo se cortou uma perna
em Europa e perdeu um braço em América, poderá encontrar a perna e o braço,
que quiçá se tenham transformado em legumes, ou tenham passado a formar
parte integrante da sangue de qualquer outro animal. Não terminaria nunca de
detalhar todas as extravagancias que sobre a alma
humana se tem publicado.
É singular que as leis do povo predileto de Deus não digam uma só palavra acerca
da espiritualidade e da imortalidade da alma, nem fale tampouco disto o Decálogo,
nem o Levítico, nem o Deuteronômio. Também é indubitável que em nenhuma
parte Moisés proponha aos judeus recompensas e penas em outra vida. Não lhes
fala nunca da imortalidade de suas almas, nem lhes disse que esperem ir ao céu,
nem lhes ameaça com o inferno. Na lei de Moisés tudo é temporal. No
Deuteronomio fala aos judeus deste modo:
«Se depois de haver tido filhos e netos prevaricais, sereis exterminados em sua
pátria e ficareis reduzidos a escasso número, que viverá espalhados pelas demais
nações.
»Eu sou um Deus zeloso que castigo a iniquidade dos pais até a terceira e até a
quarta geração.
»Honra a pai e mãe, com o fim de viver muitos anos.
»Sempre terás o que comer, a comida não os faltará nunca.
»Se obedeceres a deuses estrangeiros, serás destruído.
»Se obedeceres ao verdadeiro Deus, terás chuvas na primavera e no outono trigo, azeite, vinho, feno para os animais, e poderás comer e saciar-te.
»Imprimi estas palavras em seus corações, põe ante seus olhos, escreve-as sobre
suas portas com a idéia de que seus dias se multipliquem.
»Faz o que mando, sem tirar nem acrescentar nada.
»Se aparece um profeta que profetize sucessos prodigiosos, se sua predicação es
verdadeira, se o que prevê sucede, se diz: vamos, segui comigo aos Deuses
estrangeiros... mata-o em seguida, que se levante todo o povo contra ele para
feri-lo.
»Quando o Senhor os entregue as nações, degola sem perdoar a um só homem,
não tenhais piedade de ninguém.
»No comais animais impuros, como o são o águia, o grifo e o ixião.
»No comais tampouco animais ruminantes e que tenham as unhas fendidas, como
o camelo, a lebre, o porco espinho.
»Se observais estos mandatos, sereis abençoados na cidade e nos campos, e
serão benditos os frutos de seu ventre, de sua terra e de suas bestas.
»Se não obedeceis todos estes mandamentos nem observais todas as cerimônias,
sereis malditos na cidade e nos campos; sofrerás a pobreza e fome, morrerás de
frio, de febre e de miséria; tereis sarna, fístulas, ... os assaltarão úlceras nos
joelhos e nos músculos.
»O estrangeiro os prestará com usura, porém vocês não lhe prestareis desse
modo, porque vocês quereis servir ao Senhor.., etc., etc.
É evidente que em todas estas promessas e ameaças não se trata mais que do
temporal, e não se encontra uma só palavra que verse sobre a imortalidade da
alma nem sobre a vida futura. Alguns comentaristas ilustres acreditam que Moisés
estava inteirado desses dois grandes dogmas, e provam sua opinião apoiando-se
não que disse Jacó, o qual acreditando que haviam devorado a seu filho bestas
ferozes, exclamou: «Descerei com meu filho ao inferno;» isto é, morrei, já que
meu filho está morto. Provam também sua crença citando passagens de Isaías e
de Ezequiel; Porém os hebreus a quem falou Moisés, não poderiam ter lido a
Isaías nem a Ezequiel, que escreveram muitos séculos depois. É inútil questionar
sobre o que secretamente opinava Moisés, já que está comprovado que em suas
leis não falou nunca da vida futura, e que limita os castigos e as recompensas ao
tempo presente. Se conheceu a vida futura, por que não proclamou este dogma?
tal pergunta contestam vários comentaristas, dizendo que o Senhor de Moisés e
de todos os homens, reservou-se o direito de explicar em tempo oportuno aos
judeus uma doutrina que não estavam em estado de compreender quando viviam
no deserto. Se Moisés tivesse anunciado a imortalidade da alma, ter-lhe-ia
combatido uma importante escola dos judeus, a dos saduceus, autorizada pelo
Estado, que lhes permitia desempenhar os primeiros cargos da nação e nomear
grandes pontífices a seus sectários.
Até depois da fundação de Alexandria não se dividiram os judeus em três seitas: a
dos fariseus, dos saduceus e dos essênios. O historiador Flávio Josefo, que era
fariseu, nos refere no livro XIII de suas Antigüidades, que os fariseus acreditavam
na metempsicose; os saduceus acreditavam que a alma perecia com o corpo, e os essênios, que a alma era imortal. Segundo esses, as almas, em forma aérea,
descendiam da mais alta região dos ares, para introduzir-se nos corpos, pela
violenta atração que exerciam sobre elas; e quando morriam os corpos, as almas
que haviam pertencido aos bons, iam a morar mais além, lá do Oceano, em um
país onde não se sentia calor nem frio, nem havia vento nem chovia. As almas dos
maus iam a morar em um clima perverso. Esta era a teologia dos judeus. O que
devia ensinar a todos os homens, condenou a estas três seitas. Sem seu auxilio
não tivéssemos chegado nunca a compreender nossa alma, porque os filósofos
não tiveram jamais uma idéia determinada dela, e Moisés, único legislador do
mundo antigo, que falou com Deus frente a frente, deixou a humanidade imersa
na mais profunda ignorância respeito deste ponto. Só depois de mil e setecentos
anos teremos a certeza da existência e da imortalidade da alma. Cícero abrigava
suas dúvidas. Seu neto e sua neta souberam a verdade pelos primeiros galileus
que foram a Roma. Porém antes dessa época, e depois dela, em todo o resto do
mundo, donde apóstolos não penetraram, cada qual devia perguntar a sua alma,
que és? de donde vens? que fazes? onde vais? És um não sei que, que pensas e
sentes, porém ainda que sintas e penses mais de cem milhões de anos, não
conseguirás saber mais sem o auxilio de Deus, que te concedeu o entendimento
para que te sirva de guia, porém não para penetrar na essência. Assim pensou
Locke, e antes que Locke, Gassendi, e antes que Gassendi, muitos sábios; porém
hoje os bacharéis sabem o que esses grandes homens ignoravam.
Inimigos encarniçados da razão, se tem atrevido a opor a essas verdades
reconhecidas pelos sábios, levando sua má-fé e sua imprudência até o extremo de
imputar ao autor desta obra a opinião de que cada alma é matéria. Perseguidores
da inocência, bem sabeis que temos dito o contrario; e que dirigindo-nos a
Epicuro, a Demócrito e a Lucrécio, perguntamos: «Como podeis crer que um
átomo pense? confesso-te que não sabeis nada». Logo são uns caluniadores os
que me perseguem.
Ninguém sabe o que é o ser que chamamos espírito, ao que vocês mesmos dão
um nome material, fazendo-lhe sinônimo de ar. Os primeiros pais da Igreja
acreditavam que a alma era corporal. É impossível que nós, que somos seres
limitados, saibamos se nossa inteligência é substância ou faculdade; não podemos
conhecer a fundo nem o ser extenso nem o ser pensante, ou seja, o mecanismo
do pensamento. Apoiados na opinião de Gassendi e de Locke, afirmamos que por
nós mesmos não podemos conhecer os segredos do Criador. Sois Deuses que
sabeis tudo? Repetimos que só podemos conhecer pela revelação da natureza e o
destino da alma; e esta revelação não os basta. Devem ser inimigos da revelação,
porque perseguem aos que a crêem e aos que dela o esperam tudo.
Referimo-nos à palavra de Deus; e vocês, que fingindo religiosidade, são inimigos
de Deus e da razão, que blasfemam uns de outros, tratem a humilde submissão
do filósofo, como o lobo trata ao cordeiro nas fábulas de Esopo, e lhe dizem:
«Murmuras-te de mim o ano passado; devo beber teu sangue». Porém a filosofia
não se vinga, se ri desses vãos esforços e ensina tranqüilamente aos homens que
quereis embrutecer, para que sejam iguais a vós.
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É um termo vago, indeterminado, que expressa um princípio desconhecido, porém de efeitos conhecidos que sentimos em nós mesmos. A palavra alma corresponde à animu dos latinos, à palavra que usam todas as nações para expressar o que não compreendem mais que nós. No sentido próprio e literal do latim e das línguas que dele derivam, significa “ o que anima”. Por isso se diz: A alma dos homens, dos animais e das plantas, para significar seu princípio de vegetação e de vida.
Ao pronunciar esta palavra, só nos dá uma idéia confusa, como quando se diz no Gênesis: «Deus soprou no rosto do homem um sopro de vida, e se converteu em alma vivente, a alma dos animais está no sangue, não mateis, pois, sua alma.» De modo que a alma – em sentido geral– se toma pela origem e causa da vida, pela vida mesma. Por isto as nações antigas acreditaram durante muito tempo que tudo morria ao morrer o corpo. Ainda é difícil desentranhar a verdade no caso das histórias remotas, há probabilidade que os egípcios tenham sido os primeiros que distinguiram a inteligência e a alma, e os gregos aprenderam com eles a distinção. Os latinos, seguindo o exemplo dos gregos, distinguiram animus e anima; e nós distinguimos também alma e inteligência. Porém o que constitui o princípio de nossa vida, constitui o princípio de nossos pensamentos? São duas coisas diferentes, ou formam um mesmo princípio? O que nos faz digerir, o que nos produz sensações e nos dá memória, se parece ao que é causa nos animais da
digestão, das sensações e da memória?
Há aqui o eterno objeto das disputas dos homens. Digo eterno objeto, porque carecendo da noção primitiva que nos guie neste exame, teremos que permanecer sempre encerrados num labirinto de dúvidas e de conjeturas.
Não contamos nem com um só apoio onde firmar o pé para chegar ao vago conhecimento do que nos faz viver e do que nos faz pensar. Para possuí-lo seria preciso ver como a vida e o pensamento entram em um corpo. Sabe um pai como
produz a seu filho? Sabe a mãe como o concebe? Pode alguém adivinhar como se agita, como se desperta e como dorme? Sabem alguns como os membros obedecem a sua vontade? Terá descoberto o meio pelo qual as idéias se formam em seu cérebro e saem dele quando o deseja? Débeis autômatos, colocados pela mão invisível que nos governa no cenário do mundo, quem de nós poderia ver o fio que origina nossos movimentos?
Não nos atrevemos a questionar se a alma inteligente é espirito ou matéria; se foi criada antes que nós, se sai do nada quando nascemos; se depois de haver nos animado no mundo, vive, quando nós morremos, na eternidade. Essas questões que parecem sublimes, só são questões de cegos que perguntam a cegos: que é a luz?
Quando tratamos de conhecer os elementos que encerra um pedaço de metal, o
submetemos ao fogo em um crisol. Possuiríamos crisol para submeter a alma? Uns dizem que é espirito; porém, que é espírito? Ninguém sabe, é uma palavra tão vazia de sentido, que nos vemos obrigados a dizer que o espírito não se vê, porque não sabemos dizer o que é. A alma é matéria, dizem outros. Porém, o que é matéria? Só conhecemos algumas de suas aparências e algumas de suas propriedades; e nenhuma destas propriedades e aparências parece ter a menor relação com o pensamento.
Há também quem opine que a alma está formada de algo distinto da matéria.
Porém que provas temos disso? Se funda tal opinião em que a matéria é divisível e pode tomar diferentes aspectos, e o pensamento não. porém, quem teria dito que os primeiros princípios da matéria sejam divisíveis e figuráveis? é muito verossímil que não o sejam; seitas inteiras de filósofos sustentam que os elementos da matéria não têm forma nem extensão. O pensamento não é madeira, nem pedra, nem areia, nem metal, logo o pensamento não pode ser matéria. Mas esses são raciocínios débeis e atrevidos. A gravidade não é metal, nem areia, nem pedra, nem madeira; o movimento, a vegetação, a vida, não são nenhuma dessas coisas; e, sem dúvida, a vida, a vegetação, o movimento e a gravitação são qualidades da matéria. Dizer que Deus não pode conseguir que a matéria pense, é dizer o absurdo mais insolente que se tenha proferido na escola da demência. Não estamos certos de que Deus tenha feito isso; porém se que estamos certos de que poderia fazê-lo. Que importa tudo o que se tenha dito e o que se dirá sobre a alma? Que importa que a tenham chamado entelequia, quintessência, chama ou éter; que a tenham tomado por universal, incriada, transmigrante, etc., etc? Que importam em questões inacessíveis à razão, essas novelas criadas por nossas incertas imaginações? Que importa que os pais da Igreja dos quatro primeiros séculos acreditassem que a alma era corporal? Que importa que Tertuliano, contradizendo-se, decidisse que a alma é corporal, figurada e simples ao mesmo tempo? Teremos mil testemunhos de nossa ignorância, porém nem um só oferece vislumbre da verdade. Como nos atrevemos a afirmar o que é a alma? Sabemos com certeza que existimos, que sentimos e que pensamos. Desejamos ir mais além e caímos em abismo. Submergidos nesse abismo, todavia se apodera de nós a louca temeridade de questionar se a alma, da qual não temos a menor idéia, se criou antes que nós ou ao mesmo tempo que nós, e se perece ou é imortal.
A alma e todos os artigos que são metafísicos, devem ser submetidos
sinceramente aos dogmas da Igreja, porque sem dúvida a revelação vale mais que toda a filosofia. Os sistemas exercitam o espírito, porém a fé o alumia e o guia.
Com freqüência pronunciamos palavras sobre as quais temos idéia muito confusa, e algumas vezes ignoramos o significado. Não está neste caso a palavra alma? Quando a lingüeta ou válvula de um fole está estragado e o ar que entra no ventre do fole sai por algumas das aberturas que tem a válvula, e este não está comprimido pelas duas paletas, e não sai com a violência que se necessita para atiçar o fogo, as criadas dizem: – Está descomposta a alma do fole. Não sabem mais, e essa questão não turva sua tranqüilidade. O jardineiro fala da alma das
plantas, e as cultiva bem, sem saber o que significa esta palavra. Em muitas de nossas manufaturas, os operários dão a qualificação de alma a suas máquinas; e nunca discutem sobre o significado de tal palavra; não ocorre isso com os filósofos.
A palavra alma entre nós, em seu significado geral, serve para denotar o que anima. Nossos antepassados os celtas, deram à alma o nome de seel, do que os ingleses formaram a palavra soul, e os alemães a palavra seel, e provavelmente os antigos teutões e os antigos bretões não disputariam sobre essa palavra. Os gregos distinguiam três classes de alma: a alma sensitiva ou a alma dos sentidos (vê-se aqui porque o Amor, filho de Afrodite, sentiu tão veemente paixão por Psiquê, e porque Psiquê o amou ternamente): o sopro que dá vida e movimento a toda máquina, e que nós traduzimos por espírito; e a terceira classe
da alma que, como nós, chamaram inteligência. Possuímos pois, três almas, sem ter a mais ligeira noção de nenhuma delas. São Tomás de Aquino admite estas três almas, como bom peripatético, e distingue cada uma delas em três partes: uma está no peito, outra em todo o corpo e a terceira na cabeça. Em nossas escolas não se conheceu outra filosofia até o século 18. E desgraçado o homem que tomasse uma dessas almas por outra!
Há, sem dúvida, motivo para este caos de idéias. Os homens entendiam que quando os excitavam as paixões do amor, da cólera o do medo, sentiam certos movimentos nas entranhas. O fígado e o coração foram assinalados como sendo o local das paixões. Quando se medita profundamente, sentimos certa opressão nos órgãos da cabeça, logo a alma intelectual está no cérebro. Sem respirar não é possível a vegetação e a vida; logo, a alma vegetativa está no peito, que recebe o
sopro do ar.
Quando os homens viram em sonhos seus pais e amigos mortos, dedicaram-se a
estudar o que lhes havia aparecido. Não era corpo, porque o havia consumido uma fogueira, o mar o tinha tragado e havia servido de pasto aos peixes. Isso, não obstante, sustinha que algo lhes havia aparecido, posto que o tinham visto; o morto havia lhes falado e o que estava sonhando lhes dirigia perguntas. Com quem haviam conversado dormindo? Se imaginaram que era um fantasma, uma
figura aérea, uma sombra, os manes, uma pequena alma do ar e fogo
extremadamente delicada, que vagava por não sei onde.
Andando o tempo, quando quiseram aprofundar este estudo, convencionaram que tal alma era corporal, e esta foi a idéia que dela teve a antigüidade. Chegou depois Platão, que utilizou essa alma de tal maneira que se chegou a suspeitar que a separou quase completamente da matéria; porém esse problema não se resolveu até que a fé veio iluminar-nos. Em vão os materialistas alegam que alguns pais da Igreja não se expressaram com exatidão. Santo Irineu diz que e alma é o sopro da vida, que só é incorporal se comparada ao corpo dos mortais, porém que conserva a figura de homem para que se a reconheça.
Tertuliano se expressa deste modo: «A corporalidade da alma ressalta no Evangelho; porque se a alma não tivesse corpo, a imagem da alma não teria imagem corpórea». Em vão esse mesmo filósofo refere à visão de uma mulher santa que viu um alma muito brilhante e da cor do ar.
Alegam que Santo Hilário disse, em tempos posteriores: «Não há nada que não seja corporal, nem no céu nem na terra, nem no visível ou invisível; tudo está formado de elementos, e as almas têm sempre uma substância corporal.
Santo Ambrósio, no século 6, disse: «Não conhecemos nada que não seja material, excetuando-se a Santa Trindade.»
A Igreja decidiu, por unanimidade, que a alma é imaterial. Os citados santos incorreram em um erro que era então universal: eram homens, porém não se equivocaram a respeito à imortalidade, porque os Evangelhos evidentemente a anunciam.
Precisamos nos conformar com a decisão da Igreja, porque não possuímos noção suficiente do que se chama espírito puro e do que se chama matéria. O espírito puro é uma palavra que não nos transmite nenhuma idéia; e só conhecemos matéria por alguns de seus fenômenos. a conhecemos tão pouco, que a chamamos substância, e a palavra substância quer dizer o que está embaixo; porém este embaixo está oculto eternamente para nós; é o segredo do Criador em todas partes. Não sabemos como recebemos a vida, nem como a damos, nem
como crescemos nem como digerimos, nem como dormimos, nem como
pensamos, nem como sentimos.
II
Das dúvidas de Locke sobre a alma
O autor do artigo Alma, da Enciclopédia, se guiou escrupulosamente pelas opiniões
de Jaquelet. Porém Jaquelet não nos ensina nada. Ataca a Locke, porque este
modestamente disse: «Quiçá não seremos nunca capazes de conhecer se um ser
material pensa ou não, pela razão de que nos é impossível descobrir por meio da
contemplação de nossas próprias idéias, se Deus teria concedido a qualquer
porção de matéria o poder de conhecer-se e de pensar; ou se uniu a matéria
desse modo preparada uma substância imaterial que pensa. Com relação a nossas
noções, não nos é difícil conceber que Deus pode, se assim lhe compraz,
acrescentar à idéia que temos da matéria, a faculdade de pensar; nem nos é difícil
compreender que possa agregar-lhe outra substância que possua tal faculdade;
porque ignoramos em que consiste o pensamento, e não sabemos tampouco a classe de substância a que o Ser Todo-Poderoso possa conceder esse poder, e que
pode criar em virtude da vontade do Criador. Não encontro contradição em que
Deus, ser pensante, eterno e todo poderoso, dote se quiser, de alguns graus de
sentimento, de perfeição e de pensamento, a certas porções de matéria criada e
insensível, e que nos una a ela quando crer conveniente».
Como acabamos de ver, Locke fala como homem profundo, religioso e modesto.
Pode se dizer que Locke criou a metafísica (assim como Newton criou a física) para
conhecer a alma, suas idéias e suas afeções. Não estudou nos livros, porque estes
poderiam dar instrução errônea; se contentou com se auto-estudar; e depois de
contemplar-se longo tempo, no tratado do entendimento humano apresentou aos
homens o espelho onde se havia contemplado. Em uma palavra, reduziu a
metafísica ao que deve ser: na física experimental da alma.
Conhecidos são os desgostos que lhe proporcionou o manifestar esta opinião, que
em sua época pareceu atrevida. Porém era só a conseqüência da convicção que
tinha da onipotência de Deus e da debilidade do homem. Não assegurou que a
matéria pensa, porém disse que não sabemos bastante para demostrar que é
impossível que Deus agregue o dom do pensamento ao ser desconhecido que
chamamos matéria, depois de ter nos concedido o dom da gravitação e o dom do
movimento, que não são igualmente incompreensíveis.
Locke não foi o único que iniciou esta opinião; indubitavelmente já o abordou
antigüidade, posto que considerava a alma como uma matéria muito delicada, e
por conseqüência, assegurava que a matéria podia sentir e pensar.
Esta foi também a opinião de Gassendi, como se pode ver nas objeções que fez a
Descartes: é verdade, diz Gassendi, que sabeis que pensais, porém não sabeis que
espécie de substância sois. Portanto, ainda que seja conhecida a operação do
pensamento, desconheces o principal de vossa essência, ignorando qual é a
natureza dessa substância, da que o ato de pensar é uma das operações. nisso
pareceis ao cego que, ao sentir o calor dos raios solares e sabendo que a causa é
o sol, acreditara que teria idéia clara e distinta do que é esse astro, porque se lhe
perguntarem que é o sol, poderia dizer: «É uma coisa que aquece». O mesmo
Gassendi, em seu livro titulado Filosofia de Epicuro, repete algumas vezes que
não há evidencia matemática da pura espiritualidade da alma.
Descartes, em uma das cartas que dirigiu a princesa palatina Elisabet, disse:
«Confesso que por meio da razão natural podemos fazer muitas conjeturas
respeito ao alma, e acalentar algumas esperanças, porém não podemos ter
nenhuma segurança». Neste caso, Descartes ataca em suas cartas o que afirma
em seus livros.
Acabamos de ver que os pais da Igreja dos primeiros séculos, acreditando na alma
imortal, acreditavam-na ao mesmo tempo, material. Por isso diziam: «Deus a fez
pensante e pensante a conservará.” Malebranche provou bastante bem que nós não adquirimos nenhuma idéia por nós
mesmos, e que os objetos são incapazes de nos dar. Disto deduzo que provém de
Deus. isto equivale a dizer que Deus é o autor de todas nossas idéias. Seu
sistema forma um labirinto, no qual uma das veredas conduz ao sistema de
Espinosa, outra ao estoicismo e a terceira ao caos.
Depois de disputar muito tempo sobre o espírito e sobre a matéria, acabamos
sempre por não entender. Nenhum filósofo logrou levantar com suas próprias
força o véu que a natureza tem estendido sobre os primeiros princípios das cosas.
Enquanto eles disputam, a natureza obra. III
Da alma das bestas
Antes de admitir o estranho sistema que supõe que os animais são umas
máquinas incapazes de sensação, os homens não acreditaram nunca que as
bestas tivessem alma imaterial, e ninguém foi tão temerário a ponto de se atrever
a dizer que a ostra estava dotada de alma espiritual. Estavam em acordo as
opiniões e convinham que as bestas haviam recebido de Deus sentimento,
memória, idéias, porém não espírito. Ninguém havia abusado do dom de
raciocinar ao ponto de afirmar que a natureza concedeu às bestas todos os órgãos
do sentimento para que não tivessem sentimento. Ninguém havia dito que gritam
quando se as fere, que fogem quando se as persegue, sem sentir dor nem medo.
Não se negava então a onipotência de Deus; reconhecendo que pode comunicar à
matéria orgânica dos animais, o prazer, a dor, a lembrança, a combinação de
algumas idéias: pode dotar a vários deles, como ao macaco, ao elefante, ao cão
de caça, o talento para aperfeiçoar-se nas artes que se lhes ensinam. Porém
Pereyra e Descartes sustentaram que o mundo se equivocava, que Deus dotara
com todos os instrumentos da vida e da sensação aos animais, com o propósito
deliberado de que careceriam de sensação e de vida propriamente dita; e outros
que teriam pretensões de filósofos, com a idéia de contradizer a idéia de
Descartes, conceberam a quimera oposta, dizendo que estavam dotados de
espírito os animais, e que teriam alma os sapos e os insetos.
Entre estas duas loucuras, a primeira que nega o sentimento aos órgãos que o
produz, e a segunda que faz alojar um espírito puro no corpo de uma pulga, houve
autores que se decidiram por um meio termo, que chamaram instinto. E o que é o
instinto? é uma forma substancial, uma forma plástica, é um “não sei quê”. Serei
da sua opinião, quando chameis à maioria das coisas “não sei quê”, quando tua
filosofia seja tão debilitada que acabe em “não sei nada”.
O autor do artigo Alma, publicado na Enciclopédia, diz: «Em minha opinião, a
alma das bestas é formada de uma substância imaterial e inteligente. Porém, de que classe? Deve consistir em um princípio ativo capaz de sensações. Se
refletirmos sobre a natureza da alma das bestas, não nos aparece nenhum motivo
para crer que sua espiritualização as salve do aniquilamento.
É para mim incompreensível poder ter idéia de uma substância imaterial.
Representar-se algum objeto, é ter na imaginação uma imagem dele, e até hoje
ninguém conseguiu pintar o espírito. Concedo que o autor que acabo de citar
entenda conceber pela palavra representar. Porém eu confesso que tampouco a
concebo, como não concebo que se possa aniquilar um alma espiritual, como não
concebo a criação nem a nada, porque ignoro completamente o princípio de todas
as coisas.
Se trato de provar que a alma é um ser real, me contestam dizendo que é uma
faculdade; se afirmo que é uma faculdade como a de pensar, me respondem que
me equivoco, que Deus, dono absoluto da natureza, faz tudo em mim, dirige
todos meus atos e pensamentos; que se eu produzisse meus pensamentos,
saberia que produzo cada minuto, e não sei; que só sou um autômato com
sensações e com idéias, que dependo exclusivamente do ser Supremo, e estou tão
submisso a ele como a argila nas mãos do oleiro.
Confesso, pois, minha ignorância, e que quatro mil volumes de metafísica são
insuficientes para nos ensinar o que é alma.
Um filósofo ortodoxo dizia a um heterodoxo: «Como conseguiste chegar a crer que
por sua natureza a alma é mortal e que só é eterna pela vontade de Deus? –
Porque experimentei, contestou o outro filósofo.–Como experimentaste? Por acaso
morreste? Sim, algumas vezes. Tinha ataques de epilepsia na juventude e
asseguro que caía completamente morto durante algumas horas. Depois não
experimentava nenhuma sensação, nem recordava o que me havia sucedido.
Agora me sucede o mesmo quase todas as noites. Ignoro o momento que durmo,
e durmo sem sonhar. Só por conjeturas posso calcular o tempo que dormi. Estou,
pois, morto por seis horas a cada vinte e quatro; a quarta parte de minha vida». O
ortodoxo sustentou que ele pensava mesmo quando dormia, porém sem saber o
que. O heterodoxo replicou: «Creio que penso sempre na outra vida. Porém
asseguro que raras vezes penso nesta».
O ortodoxo não se equivocava ao afirmar a imortalidade da alma, porque a fé e a
razão demonstram esta verdade: Porém podia equivocar-se ao assegurar que o
homem dormindo pensa sempre. Locke confessava francamente que não pensava
sempre que dormia; e outro filósofo disse: «O homem possui a faculdade de
pensar, porém esta não é sua essência». Deixemos a cada indivíduo a liberdade e
o consumo de estudar-se a si mesmo e de perder-se no labirinto de suas idéias.
Não obstante, é curioso saber que em 1730 houve um filósofo que foi perseguido
por haver confessado o mesmo que Locke, ou seja que não exercitava seu
entendimento todos os minutos do dia e da noite, assim como não se servia sempre dos braços e das pernas. Não só a ignorância da corte o perseguiu, mas
também a ignorância maligna de alguns que pretendiam ser literatos. O que só
produz na Inglaterra algumas disputas filosóficas, produz em França covardes
atrocidades. Um francês foi vítima por seguir Locke.
Sempre houve na lama de nossa literatura alguns miseráveis capazes de vender
sua pluma e atacar até seus mesmos benfeitores. Esta observação parece
impertinente em um artigo que trata da alma; mas não devemos perder nenhuma
ocasião de observar a conduta dos que querem desonrar o glorioso título de
homem de letras, prostituindo seu escasso talento e consciência a um vil
interesse, a uma política quimérica e que fazem traição a seus amigos para adular
os néscios. Não sucedeu nunca em Roma denunciarem Lucrecio por haver posto
em verso o sistema de Epicuro; nem a Cícero por dizer muitas vezes que depois
de morrer não se sente dor, nem acusaram Plínio, nem a Varrão de ter idéias
particulares acerca da Divindade. A liberdade de pensar foi ilimitada em Roma. Os
homens de curtos alcances e temerosos de em França se tem esforçado em afogar
essa liberdade, mãe de nossos conhecimentos e incentivo do entendimento
humano, para conseguir seus fins tem falado dos perigos quiméricos que esta
pode trazer. Não refletiram que os romanos, que gozavam de completa liberdade
de pensar, nem por isso deixaram de ser nossos vencedores e nossos legisladores,
e que as disputas de escola tem tão pouca relação com o governo, como o tonel
de Diógenes teve com as vitorias de Alexandre. Esta lição equivale a uma lição
respeito à alma: quiçá teremos algumas ocasiões de insistir sobre ela.
Ainda adoremos a Deus com toda a alma, devemos confessar nossa profunda
ignorância respeito ao alma, a essa faculdade de sentir e de pensar que devemos
a sua bondade infinita. Confessemos que nossos débeis racioc ínios nada encerram
e nada acrescentam; e deduzamos de isto que devemos empregar a inteligência,
cuja natureza desconhecemos, em aperfeiçoar as ciências, como os relojoeiros
empregam as molas nos relógios, sem saber o que é uma mola.
IV
Sobre a alma e nossas ignorâncias
Fundado nos conhecimentos adquiridos, nos temos atrevido a questionar se a
alma se criou antes que nós, se chega do nada a introduzir-se em nosso corpo, a
que idade vem colocar-se entre uma bexiga e os intestinos, se ali recebe o aporte
algumas idéias, e que idéias são estas; se depois de animar-nos alguns
momentos, sua essência, logo que o corpo morre, vive na eternidade; se sendo
espírito, o mesmo que Deus, é diferente deste ou é semelhante. Essas questões
que parecem sublimes, como dizemos, são as questões que entabulam os cegos
de nascimento respeito da luz.
O que nos tem ensinado os filósofos antigos e os modernos? Nos tem ensinado
que uma criança é mais sábia que eles, porque este só pensa não que pode
conseguir. Até agora a natureza dos primeiros princípios é um segredo do Criador. Em que consiste que os ares arrastam os sons? Como é que alguns de nossos
membros obedecem constantemente a nossa vontade? Que ma é a que coloca as
idéias na memória, as conserva ali como em um registro e as saca quando
queremos e também quando não queremos? Nossa natureza, a do universo e a
das plantas, estão escondidas em um abismo de trevas. O homem é um ser que
obra, que sente e pensa: é isso o todo que sabemos; porém ignoramos o que nos
faz pensar, sentir e obrar. A faculdade de obrar é tão incompreensível para nós
como a faculdade de pensar. É menos difícil conceber que o corpo de barro tenha
sentimentos e idéias que conceber que um ser tenha idéias e sentimentos.
Compara a alma de Arquimedes com a alma de um imbecil: são as duas de uma
mesma natureza? Se é essencial o pensar, pensarão sempre com independência
do corpo, que não poderá obrar sem elas; se pensam por sua própria natureza,
será da mesma espécie a alma que não pode compreender uma regra de
aritmética, que a alma que mediu os céus? Se os órgãos corporais fazem pensar a
Arquimedes, por que um idiota, melhor constituído e mais vigoroso que
Arquimedes, dirigindo melhor e desempenhando com mais perfeição as funções
corporais, não pensa? A isto se contesta que seu cérebro não é tão bom; porém
isso é uma suposição, porque os que assim contestam não sabem. Não se
encontrou nunca diferença alguma nos cérebros dissecados; e é ademais
verossímil que o cerebelo de um tonto se encontre em melhor estado que o de
Arquimedes, que o usou e o fatigou prodigiosamente.
Deduzamos, pois, disto o que antes deduzimos, que somos ignorantes ante os
primeiros princípios.
V
Da necessidade da revelação
O maior beneficio que devemos ao Novo Testamento, consiste em nos ter revelado
a imortalidade da alma. Inútil foi que o bispo Warburton tratara de obscurecer tão
importante verdade, dizendo continuamente que «os antigos judeus desconheciam
esse dogma necessário, e que os saduceus não o admitiam na época de Jesus».
Interpreta a seu modo as palavras que dizem que Cristo pronunciou: «Ignorais
que Deus disse: eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isac e o Deus de Jacó? Logo
Deus não é o Deus dos mortos, e o Deus dos vivos». Atribui à parábola do mau
rico o sentido contrário ao que atribuem todas as igrejas. Sherlock, bispo de
Londres, e outros muitos sábios o refutam; os mesmos filósofos ingleses acham
escandaloso que um bispo anglicano tenha a opinião contrária da Igreja anglicana;
e Warburten, ao se ver contrariado, chama ímpios a ditos filósofos, imitando a
Arlequim, personagem da comedia titulada o Ladrão da Casa, que depois de
roubar e arrojar os móveis pela janela, vendo que na rua um homem levava
alguns, gritou com toda a força de seus pulmões: – Pega ladrão!
Vale mais bendizer a revelação da imortalidade da alma e as das penas e recompensas depois da morte, que a soberba filosofia de homens que semeiam a
dúvida. o grande César não acreditava; disse em pleno Senado, quando para
impedir que matassem a Catilina, expôs seu critério, segundo o que a morte não
deixava no homem nenhum sentimento, e tudo morria com ele. Ninguém refutou
esta opinião.
O império romano estava dividido em duas grandes seitas: a de Epicuro, que
sustinha que a divindade era inútil no mundo, e que a alma perecia com o corpo; e
a dos estóicos, que sustentava ser a alma era uma porção da divindade, a qual
depois da morte do corpo voltava a sua origem, isto é, ao grande todo de onde
havia emanado. Umas seitas acreditavam que a alma era mortal e outras que era
imortal, porém todas elas estavam conformes em fugir das penas e as buscar
recompensas futuras.
Restam todavia bastantes provas de que os romanos tiveram tal crença; e esta
opinião, profundamente gravada nos corações dos heróis e dos cidadãos
romanos, os induzia a matar-se sem o menor escrúpulo, sem esperar que o tirano
os entregasse ao verdugo.
Os homens mais virtuosos de então, que estavam convencidos da existência de
um Deus, não esperavam na outra vida nenhuma recompensa, nem temiam
nenhum castigo. Vemos no artigo titulado Apócrifo, que Clemente, que mais tarde
foi Papa e Santo pôs em dúvida que os primitivos cristãos acreditassem na
segunda vida, e sobre isto consultou a São Pedro em Cesárea. Não cremos que
São Clemente escreveu a história que se lhe atribui; porém essa história prova
que o gênero humano necessitava guiar-se pela revelação. O que neste assunto
nos surpreende é que um dogma tão saudável tenha permitido que cometam
brilhantes crimes os homens que vivem tão pouco tempo e que se vem
comprimidos entre duas eternidades.
VI
As almas dos tolos e dos monstros
Nasce uma criança mal formada e absolutamente imbecil, não concebe idéias e
vive sem elas. Como podemos definir esta classe de animal? Uns doutores dizem
que é algo entre o homem e a besta, outros, que possui um alma sensitiva, porém
não alma intelectual. Come, bebe e dorme, tem sensações, porém não pensa.
Existe para ele a outra vida, ou não existe? Se tem proposto este caso, porém até
hoje não se obteve completa resolução.
Alguns filósofo tem dito que a referida criatura devia ter alma, porque seu pai e
sua mãe a teriam; Porém guiando-nos por este raciocínio, se tivesse nascido sem
nariz, devíamos supor que o teria, porque seu pai e sua mãe tiveram.
Una mulher dá à luz a uma criança que tem o rosto achatado e escuro, um nariz
afilado e pontiagudo, olhos redondos e, apesar disso, o resto do corpo é idêntico ao dos demais mortais. Os pais decidem que tenha batismo, e todo o mundo
acredita que possua uma alma imortal. Porém, se essa mesma ridícula criatura
tem unhas em forma de ponta e a boca em forma de bico, declaram-no monstro,
dizem que não tem alma e não o batizam.
Sabido é que em Londres, em 1726, houve uma mulher que paria cada oito dias
um coelhinho. Sem nenhuma dificuldade, batizavam a dita criança. O cirurgião que
assistia a referida mulher no parto, jurava que esse fenômeno era verdadeiro, e
acreditavam. Porém, que motivo teriam os crédulos para negar que tivessem alma
os filhos de tal mulher? Ela a teria, seus filhos deviam também tê-la. O Ser
Supremo não pode conceder o dom do pensamento e o da sensação ao ser
desfigurado que nasça de uma mulher em forma de coelho, ou mesmo que o que
nasça em figura de homem? A alma que se predisporia a alojar-se no feto dessa
mãe, seria capaz de voltar ao vazio?
Locke observa sobre os monstros, que não deve atribuir-se a imortalidade ao
exterior do corpo, que a configuração nada importa neste caso. A imortalidade não
está mais ligada à forma do rosto ou do tórax, que à configuração da barba o ao
feitio do traje; e pergunta: Qual é a justa medida de deformidade para que se
considere se uma criança tem ou não alma? Qual o grau para ser declarado
monstro?
Que temos de pensar nesta matéria de uma criança que tenha duas cabeças e
que, apesar disto, tenha um corpo bem proporcionado? Uns dizem que tem duas
almas, porque está provido de duas glândulas pineais, e outros contestam
dizendo que não pode ter duas almas quem não tem mais que um peito e um
umbigo.
Se tem questionado tanto sobre a alma humana, que se esta chegasse a examinar
todas, seria vítima de insuportável fastio. Aconteceria o mesmo que ocorreu ao
cardeal de Polignac em um conclave. Seu intendente, cansado de não pode
inteirar nunca das contas da intendência, fez com o cardeal uma viagem a Roma e
se colocou na janela de sua cela, carregando um imenso fardo de papéis. Ficou ali
lendo as contas mais de duas horas, enquanto esperava pela volta de Polignac.
Por fim, vendo que não obteria nenhuma contestação, meteu a cabeça pela janela.
Há duas horas que o cardeal havia saído de sua cela. Nossas almas nos
abandonam antes que seus intendentes se tivessem inteirado do tanto que delas
nos temos ocupado.
VII
Devo confessar que sempre que examino ao infatigável Aristóteles, ao doutor
Angélico e ao divino Platão, tomo por motes estes epítetos que se lhes aplicam.
Parece-me que todos os filósofos se tem ocupado da alma humana, cegos,
charlatães e temerários, que fazem esforços para persuadir-nos de que tem vista
de águia, e vejo que há outros amantes da filosofia, curiosos e loucos, que os acreditam em sua palavra, imaginando, por sugestão, que vêem algo.
Não vacilo em colocar na categoria de mestres de erros Descartes e
Malebranche. Descartes nos assegura que a alma do homem é uma substância,
cuja essência é pensar que pensa sempre, e que se ocupa desde o ventre da mãe
de idéias metafísicas e de ações gerais que esquece em seguida. Malebranche está
convencido de que todo vemos em Deus. Se encontrou partidários, é porque as
fábulas mais atrevidas são as que melhor recebem a débil imaginação do homem.
Muitos filósofos tem escrito a novela da alma; Porém um sábio é o único que tem
escrito modestamente sua história. Compendiarei essa história segundo a
concebo. Compreendo que todo o mundo não estará de acordo com as idéias de
Locke: pode ser que Locke tenha razão contra Descartes e Malebranche, e que se
equivoque sobre Sorbonne; porém eu falo do ponto de vista da filosofia, não do
ponto das revelações da fé.
Só me corresponde pensar humanamente. Os teólogos que decidam respeito do
divino: a razão e a fé são de natureza contrária. Em uma palavra, vou a citar um
extrato de Locke, a quem eu censuraria se fosse teólogo, porém a quem patrocino
como uma hipóteses, como conjetura filosófica humanamente falando. Se trata de
saber o que é a alma.
1º a palavra alma é uma dessas palavras que pronunciamos sem entender, só
entendemos as coisas quando temos idéia delas, não temos idéia da alma, logo
não a compreendemos.
2º Se nos tenha ocorrido chamar alma à faculdade de sentir e pensar, assim como
chamamos vida a faculdade de viver e vontade à faculdade de querer.
Alguns disseram em seguida isto: –O homem é um composto de matéria e de
espírito; a matéria é extensa e divisível, o espírito não é uma coisa nem outra,
logo é de natureza distinta. É uma reunião de dois seres que não criados um para
o outro e que Deus uniu apesar de sua natureza. Apenas vemos o corpo, e
absolutamente não vemos a alma. Esta não tem partes; logo é eterna: tem idéias
puras e espirituais, logo não as recebe da matéria: tampouco as recebe de si
mesma; logo Deus se as dá, logo ela aporta ao nascer a idéia de Deus e do
infinito, e todas as idéias gerais.
Humanamente falando, contesto essas palavras, dizendo que são muito sábios.
Começam concedendo que existe alma, e logo explicam o que deve ser:
pronunciam a palavra matéria e decidem o que a matéria é. Porem eu lhes
explico: não conheceis nem o espírito nem a matéria. Quanto ao espírito, só
concedeis a faculdade de pensar; e enquanto à matéria, compreendeis que esta
não é mais que uma reunião de qualidades, de cores, e de solidez; a essa reunião
chamais matéria, e marcais os limites desta e os da alma antes de estar seguros
da existência de uma e de outra. Ensinais gravemente que as propriedades da matéria são a extensão e a solidez; e
eu os repito modestamente que a matéria tem outras mil propriedades, que nem
vocês nem eu conhecemos. Assegurais que a alma é indivisível e eterna, dando
por certo o que é questionável. Obrais quase o mesmo que o diretor de um colégio
que, não tendo visto um relógio em sua vida, puserem em suas mão de repente
um relógio de repetição inglês. Esse diretor, como bom peripatético, fica surpreso
ao ver a precisão com que as setas dividem e marcam o tempo, e se assombra
quando o botão comprimido pelo dedo faça tocar a hora que a seta marca. O
filósofo não duvida um momento que dita máquina tenha um alma que a dirige e
que se manifesta por meio dos cordas. Demonstra cientificamente sua opinião, e
compara essa máquina com os anjos, que imprimem movimento às esferas
celestes, sustentando em classe uma agradável teses sobre a alma dos relógios,
um de seus discípulos abre o relógio e não vê mais que as rodas e molas, e
mesmo assim, segue sustentando sempre o sistema da alma dos relógios, crendoo
demostrado. Eu sou o estudante que abre o relógio, que se chama homem e que
em vez de definir com atrevimento o que não compreendemos, trata de examinar
por graus o que desejamos conhecer.
Tomemos uma criança desde o momento em que nasce, e sigamos passo a passo
o progresso de seu entendimento. Ensinaram-me que Deus se tomou o trabalho
de criar um alma para que se alojasse no corpo de dita criança quando este
tivesse cerca de seis semanas, e que quando se introduz em seu corpo está
provisão de idéias metafísicas, conhece o espírito, as idéias abstratas e o infinito;
em uma palavra, é sábia. Porém desgraçadamente sai do útero com uma completa
ignorância; passa dezoito meses sem conhecer mais que o peito da nutriz, e
quando chega aos vinte anos, e se pretende que essa alma recorde idéias
científicas que teve quando se uniu a seu corpo, é muitas vezes tão obtusa, que
nem sequer pode conceber nenhuma de aquelas idéias. O mesmo dia que a mãe
pare a citada criança com sua alma, nascem na casa um cão, um gato e um
canário. ao cabo de dezoito meses, o perro é excelente caçador, ao ano o canário
canta muito bem, e o gato ao cabo de seis semanas possui todos os atrativos que
deve possuir e a criança, ao cumprir quatro anos, não sabe nada. Suponho que eu
seja um homem grosseiro, que tenha presenciado tão prodigiosa diferença e que
não tenha visto nunca uma criança; desde logo acredito que o gato, o cão e o
canário, são criaturas muito inteligentes, e que a criança é um autômato. Porém
pouco a pouco vou percebendo que a criança tem idéias, memória e as mesmas
paixões que esses animais, e então compreendo que é uma criatura razoável como
elas. Comunica-me diferentes idéias por meio das palavras que aprendi, como o
cão por seus distintos gritos me faz conhecer suas diversas necessidades. Percebo
que aos sete ou oito anos a criança combina em seu cérebro quase tantas idéias
como o cão de caça no seu, e que por fim, passando os anos consegue adquirir
grande número de conhecimentos Então que devo pensar dele? Que é de uma
natureza completamente diferente. Não posso crer porque vocês vêem um imbecil
ao lado de Newton, e sustentam que um e outro são da mesma natureza, com a
única diferença do mais ao menos. Encontro entre uma criança e um cão muitos
mais pontos de contato que encontro entre o homem de talento e o homem absolutamente imbecil Que opinião tens, pois, dessa natureza? A que todos os
povos tiveram antes que a ciência egípcia trouxesse a idéia de espiritualidade, de
imortalidade da alma Até suspeitarei, com aparências de verdade, que
Arquimedes e um tolo são da mesma espécie, ainda que de gênero diferente; que
a oliveira e o grano de mostarda estão formados pelos mesmos princípios, ainda
que aquela seja um árvore grande e esta uma planta pequena. Crerei que Deus
concedeu porções de inteligência às porções de matéria organizadas para pensar,
que a matéria está dotada de sensações proporcionadas de acordo com a finura de
seus sentidos e que estes proporcionam a medida de nossas idéias. Crerei que a
ostra tem menos sensações e menos sentido, porque tendo a alma dentro da
concha, os cinco sentidos são inúteis para ela. Há muitos animais que só estão
dotados de dois sentidos; nós temos cinco, e por certo que são muito poucos. É de
crer que em outros mundos existam outros animais que estejam dotados de vinte
o de trinta sentidos e outras espécies muito mais perfeitas que tenham muitos
mais.
Esta parece a maneira mais lógica de raciocinar, quero dizer, de suspeitar e
adivinhar. Indubitavelmente passou muito tempo antes que os homens fossem
bastante engenhosos para inventar um ser desconhecido que está em nós, que
nos faz obrar, que não é completamente nós, e que vive depois que nós
morremos. Desse modo se chegou por graus a conceber idéia tão atrevida. No
princípio, a palavra alma significou vida, e era comum para nós e para os demais
animais; logo nosso orgulho nos fez suspeitar que a alma só correspondia ao
homem, e então inventamos uma forma substancial para as demais criaturas: o
orgulho humano pergunta em que consiste a faculdade de aperceber-se e de
que se chama alma no homem e instinto no bruto. Elucidarei essa questão quando
os físicos me ensinem o que é a luz, o som, o espaço, o corpo e o tempo. Repetirei
com o sábio Locke: a filosofia consiste em deter-se quando a tocha da física não
nos alumia.
Observo os efeitos da natureza; Porém confesso que, como vocês, tampouco
conheço os primeiros princípios. Tudo se reduz a que não devo atribuir a muitas
causas, e muito menos a causas desconhecidas, o que posso atribuir a uma causa
conhecida: posso atribuir a meu corpo a faculdade de pensar e de sentir, logo não
devo buscar a faculdade de sentir e de pensar no que se chama alma ou espírito,
do que não tenho a menor idéia. Os sublevais contra esta proposição, e creéis que
é religiosidade atrever -se a dizer que o corpo possa pensar. Porém que
contestarias –responderia Locke,– se os dissesse que vocês sois também culpáveis
de irreligião, porque se atrevem a limitar o poder de Deus? Quem, sem ser ímpio,
pode assegurar que é impossível para Deus dotar à matéria da faculdade de sentir
e de pensar? Sois ao mesmo tempo débeis e atrevidos, assegurais que a matéria
não pensa, unicamente porque não concebeis que a matéria possa pensar.
Grandes filósofos, que decidis sobre o poder de Deus, e ao mesmo tempo
concedeis que pode Deus converter uma pedra em um anjo (Mateus, cap III, vers.
9.), não compreendeis que segundo suas mesmas teorias e no citado caso, Deus concederia à pedra a faculdade de pensar? Se a matéria da pedra desaparecera,
não seria pedra, seria anjo. De qualquer parte que questioneis, os vereis
obrigados a confessar duas coisas, sua ignorância e o poder imenso do Criador:
sua ignorância nega que a matéria possa pensar, e a onipotência do Criador nos
demonstra que lhe é possível conseguir que a matéria pense.
Sabendo que a matéria não perece, não deveis negar a Deus o poder de conservar
nessa mesma matéria a melhor das qualidades de que a dotou. A extensão
subsiste sem corpo por si mesma, já que há filósofos que acreditam no vazio; os
acidentes subsistem independentes da substância para os cristãos que acreditam
na substanciação. Dizeis que Deus não pode fazer nada que implique contradição,
porém para encontrar esta se necessita saber muito mais do que sabemos; e
nesta matéria só sabemos que temos corpo e que pensamos. Alguns que
aprenderam na escola a não duvidar, e que tomam por oráculos os silogismos que
nelas lhes ensinaram e as superstições que aprenderam por religião, tem a Locke
por ímpio perigoso. Devemos fazer-lhes compreender o erro em que incorrem e
ensinar-lhes que as opiniões dos filósofos jamais prejudicaram à religião. Está
provado que a luz provém do sol, e que os planetas giram ao redor desse astro:
por isto não se lê com menos fé na Bíblia que a luz se formou antes do sol, e que
o sol parou ante a aldeia de Gabão. Está demostrado que o arco-íris se forma com
a chuva e por isso não se deixa de respeitar o texto sagrado, que disse que Deus
pôs o arco-íris nas nuvens, depois do dilúvio, como sinal de que já não haveria
mais inundações.
Os mistérios da Trindade e da Eucaristia, que contradiz nas demonstrações da
razão, não por isso deixam de reverencia-los os filósofos católicos, que sabem que
a razão e a fé são de diferente natureza. A idéia dos antípodas foi condenada pelos
papas e os concílios; e logo outros papas reconheceram os antípodas, aonde
levaram a religião cristã, cuja destruição acreditaram segura no caso de poder
encontrar um homem, que, como se dizia então, tivesse a cabeça abaixo e os pies
acima, com relação a nós, e que, como disse Santo Agostinho, tivesse caído do
céu.
VIII
Suponho que há em uma ilha uma dúzia de filósofos bons, e que em essa ilha não
tem visto mais que vegetais. Esta ilha, e sobretudo os doze filósofos bons, são
difíceis de encontrar; porém permita-me esta ficção. Admiram a vida que circula
pelas fibras das plantas, que parece que se perde e se renova em seguida; e não
compreendendo bem como as plantas nascem, como se alimentam e crescem,
chamam a estas operações alma vegetativa. «Que entendeis por alma vegetativa?
– É uma palavra, respondem, que serve para explicar a mola desconhecida que
move a vida das plantas. – Porém não compreendeis, lhes replica um mecânico,
que esta a desenrola os pesos, as alavancas, as rodas e as polias?– Não,
replicarão ditos filósofos; em sua vegetação há algo mais que movimentos
ordinários; existe em todas as plantas o poder secreto de atrair o sumo que as nutre: e esse poder, que não pode explicar nenhum mecânico, é um dom que
Deus concedeu à matéria, cuja natureza nos é desconhecida». Depois dessa
questão, os filósofos descobrem os animais que há na ilha, e logo de examiná-los
atentamente, compreendem que há outros seres organizados como os homens.
Esses seres é indubitável que tem memória, conhecimento, que estão dotados
das mesmas paixões que nós, que nos fazem compreender suas necessidades, e
como nós, perpetuam sua espécie. Os filósofos dissecam alguns animais, lhes
encontram coração e cérebro, e exclamam: « O autor dessas máquinas, que não
cria nada inútil, lhes tivesse concedido todos os órgãos do sentimento com o
propósito de que não sentissem? Seria absurdo acreditar nisso. Encerram algo que
chamaremos também alma, na falta de outra expressão mais própria algo que
experimenta sensações e que em certa medida tem idéias. Porém qual é esse
princípio? É diferente da matéria? É espírito puro? É um ser intermediário entre a
matéria, que apenas conhecemos, e entre o espírito puro, que nos é
completamente desconhecido? É uma propriedade que Deus concedeu à matéria
orgânica?»
Os filósofos, para estudar essa matéria, fazem experimentos com os insetos e os
lagartos; cortam-nos, dividindo-os em muitas partes, e ficam surpresos ao ver que
ao passar algum tempo nascem cabeças nas partes cortadas. Ou mesmo que o
animal se reproduz, em sua própria destruição encontra o meio de multiplicar-se.
Há muitas almas que estão esperando para animar partes reproduzidas. Parecemse
com árvores das quais se cortam ramos e, plantando-os, se reproduzem. Essas
árvores têm muitas almas? Não parece possível. Logo, é provável que a alma das
bestas seja de outra espécie que as que chamamos de alma vegetativa nas
plantas, que seja uma faculdade de ordem superior que Deus concedeu a certas
porções de matéria para dar-nos outra prova de seu poder e outro motivo para
adorá-lo.
Se ouvisse este raciocínio de um homem violento, lhe diria: «Sois um malvado
merece que o queime o corpo para salvar as almas, porque negais a imortalidade
da alma do homem». Os filósofos, ao ouvir isso, se olhariam com surpresa; e
depois, um deles contestaria com suavidade ao homem violento: Por que acreditas
que devemos arder em uma fogueira e que o induzo a supor que abriguemos nós
o conhecimento de que é mortal vossa alma cruel? – Porque abrigais a crença de
que Deus concedeu aos brutos, que estão organizados como nós, a faculdade de
ter sentimentos e idéias; e como a alma das bestas morre com seus corpos,
acreditas também que o mesmo morre a alma dos homens. Um dos filósofos
replicaria:
–Não temos a segurança de que o que chamamos de alma nos animais se pareça
quando esses deixam de viver; estamos persuadidos que a matéria não perece, e
supomos que Deus haja dotado os animais de algo que pode conservar, se esta é
a vontade divina, a faculdade de ter idéias. Não asseguramos que isto suceda,
porque não é próprio de homens ser tão confiados; Porém não nos atrevemos a
pôr limites ao poder de Deus. Dizemos apenas que é provável que as bestas, que são matéria, tenham recebido um tanto de inteligência. Descobrimos todos os dias
propriedades da matéria, que antes de descobri-las não tínhamos idéia de que
existiram. Começamos definindo a matéria, dizendo que era uma substância que
teria extensão; logo reconhecemos que também teria solidez, e mais tarde
tivemos que admitir que a matéria possui uma força que chamamos força de
inércia, e ultimamente nos surpreendeu a nós mesmos ter que confessar que a
matéria gravita. Ao avançar em nossos estudos, nos vimos obrigados a reconhecer
seres que se parecem em algo à matéria, e que, contudo, carecem dos atributos
de que a matéria está dotada. O fogo elementar, por exemplo, obra sobre nossos
sentidos como os demais corpos; porém não tem a um centro comum como estes;
pelo contrario, se escapa do centro em linhas retas por todas partes; e não parece
que obedeça às leis de atração e de gravitação como os outros corpos. A óptica
tem mistérios que só podemos explicar atrevendo-nos a supor que os raios da luz
se compenetram. Efetivamente, há algo na luz que a distingue da matéria
comum: parece que a luz seja um ser intermediário entre os corpos e outras
espécies de seres que desconhecemos. é verossímil que essas outras espécies de
seres sejam o ponto intermediário que conduza até outras criaturas, e que assim
sucessivamente exista uma cadeia de substâncias que se elevem até o infinito.
Essa idéia nos parece digna da grandeza de Deus, se há alguma idéia humana
digna dela. Entre essas substâncias pôde Deus escolher uma para alojá-la em
nossos corpos, e é a que nós chamamos alma humana. Os livros santos nos
ensinam que essa alma é imortal, e a razão está nisso de acordo com a revelação:
nenhuma substância perece: as formas se destroem, o ser permanece. não
podemos conceber a criação de uma substância; tampouco podemos conceber
seu aniquilamento. Porém nos atrevemos a afirmar que o Senhor absoluto de
todos os seres pode dotar de sentimentos e de percepções ao ser que se chama
matéria. Estais seguro de que pensar é a essência de sua alma, porém nós não
estamos; porque quando examinamos um feto nos custa grande trabalho crer que
sua alma teve muitas idéias em sua envoltura materna, e duvidamos que em seu
sonho profundo, em sua completa letargia, tenha podido dedicar-se à meditação.
Por isso nos parece que o pensamento possa consistir não na essência do ser
pensante, senão no presente que o Criador fez a esses seres que chamamos
pensadores; e tudo isto nos faz suspeitar que se Deus quisesse, poderia outorgar
esse dom a um átomo, conservá-lo o destruí-lo, segundo fosse sua vontade. A
dificuldade consiste menos em adivinhar como a matéria pode pensar, que em
adivinhar como pensa uma substância qualquer. Só concebemos idéias, porque
Deus as quis dar. Por que o empenho em se opor a que as tenha concedido às
demais espécies? Atrevem-se a crer que sua alma seja da mesma classe que as
substâncias que estão mais próximas da divindade? Há motivo para suspeitar que
estas sejam de ordem superior e, portanto, Deus lhes haja concedido uma
maneira de pensar infinitamente mais formosa; assim como concedeu quantidade
muito limitada de idéias aos animais, que são de um ordem inferior aos homens.
Não sei como vivo nem como dou a vida, e querem que saiba como concebo
idéias! A alma é um relógio que Deus nos concedeu para dirigirmos, porém não
nos explicou a maquinaria de que o relógio se compõe. De tudo quanto digo não é possível inferir que a alma humana seja mortal. Em
resumo: pensamos o mesmo que vos sobre a imortalidade que a fé nos anuncia;
porém somos demasiado ignorantes para poder afirmar que Deus não tenha poder
para conceder a faculdade de pensar ao ser que Ele queira. Limitais o poder do
Criador, que é sem limites, e nós o estendemos até onde alcança sua existência.
Perdoe-nos que o cremos onipotente, e nós os perdoaremos que restrinjais seu
poder. Sem dúvida sabeis tudo o que pode fazer e nós ignoramos. Vivamos como
irmãos, adorando tranqüilamente ao Pai comum. Só temos de viver um dia,
vivamos em paz, sem proporcionarmos questões que se decidirão na vida
imortal».
O homem brutal, não encontrando nada que replicar aos filósofos, incomodandose,
falou e disse muitas bobagens. Os filósofos se dedicaram durante algumas
semanas a ler história, e depois deste estudo, eis aqui o que disseram àquele
bárbaro indigno de estar dotado de alma imortal:
«Temos lido que na antigüidade havia tanta tolerância como em nossa época, que
nela se encontram grandes virtudes, e que por suas opiniões não perseguiam aos
filósofos. Por que, pois, pretendeis que nos condenem ao fogo pelas opiniões que
professamos? Acreditavam na antigüidade que a matéria era eterna; porém os
que supunham que era criada, não perseguiram aos que não acreditavam. Dissese
então que Pitágoras, em uma vida anterior, havia sido galo, que seus pais
haviam sido cervos, e apesar disto, sua seita foi querida e respeitada em todo o
mundo. Os estóicos reconheciam um Deus mais o menos semelhante ao que
admitiu depois temerariamente Espinosa; o estoicismo, sem dúvida, foi a seita
mais acreditada e a mais fecunda em virtudes heróicas. Para os epicuristas, os
Deuses eram semelhantes a nossos cônegos e sua indolente gordura sustentava
sua divindade, e tomavam em paz o néctar e a ambrosia sem imiscuir-se em
nada. Os epicuristas ensinavam a materialidade e a mortalidade da alma, porém
não por isso deixaram de ter-lhes considerações, e eram admitidos a
todos os empregos.
Os platônicos não acreditavam que Deus se tivesse dignado criar o homem por si
mesmo; diziam que havia confiado este encargo aos gênios, que ao desempenhar
sua tarefa cometeram muitas bobagens. O Deus dos platônicos era um obreiro
sem defeitos, porém que empregou para criar o homem discípulos muito
incompetentes. Não por isso a antigüidade deixou de apreciar a escola de Platão.
Numa palavra: quantas seitas conheceram os gregos e os romanos, teriam
distintos modos de opinar sobre Deus, sobre a alma, sobre o passado e sobre o
porvir; e nenhuma dessas seitas foi perseguida. Todas essas seitas se
equivocavam, porém viveram em amistosa paz, e isto é o que não alcançamos a
compreender, porque hoje vemos que a maior parte dos debatedores são
monstros e os da antigüidade eram verdadeiros homens.
Se desde os gregos e os romanos queremos remontar às nações mais antigas,
podemos fixar a atenção nos judeus. Esse povo que foi supersticioso, cruel, ignorante e miserável, sabia, sem dúvida, honrar aos fariseus, que acreditavam na
fatalidade do destino e na metempsicose. Respeitava também aos saduceus, que
negavam em absoluto a imortalidade da alma e a existência dos espíritos,
fundando-se na lei de Moisés, que não falou nunca de penas nem de recompensas
depois da morte. Os essênios, que acreditavam também na fatalidade, e nunca
sacrificavam vítimas no templo, eram mais respeitados todavia que os fariseus e
saduceus. Nenhuma dessas opiniões perturbou nunca o governo do Estado.
Devemos, pois, imitar esses louváveis exemplos; devemos pensar em alta voz, e
deixar que pensem o que quiserem os demais. Sereis capaz de receber
cortesmente a um turco que acredite que Maomé viajou para a lua, e desejais
esquartejar a um irmão seu porque acredita que Deus pode dotar de inteligência a
todas as criaturas?»
Assim falou um dos filósofos; e outro completou: – «Acredite, não há exemplo de
nenhuma opinião filosófica que prejudique à religião de nenhum povo. Os
mistérios podem contradizer as demonstrações científicas; nem por isso deixam de
respeitá-los os filósofos cristãos, que sabem que os assuntos da razão e da fé são
de diferente natureza. Sabeis por que os filósofos não lograrão nunca formar uma
seita religiosa? Pois não a formarão porque carecem de entusiasmo. Se dividimos
o gênero humano em vinte partes, compõem as dezenove os homens que se
dedicam a trabalhos manuais, e quiçá estes ignorarão sempre que existiu Locke.
Na outra parte, se encontram poucos homens que param a ler, e entre os que
lêem há vinte que só lêem novelas para cada um que estuda filosofia. É muito
exíguo o número dos que pensam; e estes não se ocupam em perturbar o mundo.
Não jogariam a maçã da discórdia em sua pátria Montaigne, Descartes, Gassendi,
Bayle, Espinosa, Hobbes, Pascal, Montesquieu, nem nenhum dos homens que tem
honrado a filosofia e a literatura. A maior parte dos que perturbaram seu país
foram teólogos, que ambicionaram ser chefes de seita ou ser de partido. Todos os
livros de filosofia moderna juntos não produziram no mundo tanto ruído como
produziu em outro tempo a disputa que tiveram os franciscanos sobre a forma que
devia dar-se a suas mangas e a seus capuchões».
IX
Da antigüidade do dogma da imortalidade da alma
O dogma da imortalidade da alma é a idéia mais consoladora e ao mesmo tempo
mais repressora que o espírito humano pode conceber. Esta agradável filosofia foi
tão antiga no Egito como suas pirâmides; e antes dos egípcios, a conheceram os
persas. Zoroastro, que cita o Sadder, quando Deus ensina a Zoroastro o local
destinado para receber o castigo, local que se chamava Dardarot no Egito, Hades
e Tártaro em Grécia, e nós temos traduzido imperfeitamente em nossas línguas
modernas pela palavra inferno. Deus ensina a Zoroastro no local destinado aos
castigos, a todos os maus reis, a um dos quais faltava um pé, e Zoroastro
perguntou por que razão. Deus respondeu que esse rei só havia feito uma boa
ação em toda sua vida, e esta ação consistia em haver aproximado com o pé uma
gamela que não estava bastante próxima a um pobre burrico que morria de fome. Deus levou ao céu o pé do rei malvado, e deixou no inferno o resto de seu corpo.
Dita fábula, que nunca se repetirá bastante, demonstra como era na remota
antigüidade a opinião sobre a segunda vida. Os índios também teriam esta
opinião, e sua metempsicoses o prova. Os chineses reverenciavam as almas de
seus antepassados; e esses povos fundaram poderosos impérios muito tempo
antes que os egípcios.
Ainda que seja antigo o império de Egito, não é tanto como os impérios do Ásia; e
naquele e nestes, a alma subsistia depois da morte do corpo. Verdade é que todos
esses povos, sem exceção, supunham que a alma teria forma etérea, sutil, e era
imagem do corpo. A palavra sopro a inventaram muito depois os gregos. Porém
não se pode negar que acreditaram que era imortal uma parte de nós mesmos. Os
castigos e as recompensas na outra vida, formaram os cimentos da antiga
teologia.
Ferecides foi o primeiro grego que acreditou que as almas viviam uma eternidade,
porém não foi o primeiro que disse que as almas sobreviviam aos corpos. Ulisses,
que viveu muito tempo antes que Ferecides, havia visto as almas dos heróis nos
Infernos; porém que as almas fossem tão antigas como o mundo, foi uma opinião
que nasceu no Oriente e que Ferecides difundiu no Ocidente. Não creio que exista
um só sistema moderno que não se encontre nos povos antigos. Os edifícios
atuais temos construído com os escombros da antigüidade.
X
Seria um magnífico espetáculo poder ver a alma. A máxima Conhece-te a ti
mesmo é um excelente preceito, mas preceito que só Deus pode praticar; pois,
que mortal pode compreender sua própria essência?
Chamamos alma ao que anima; porém não podemos saber mais dela, porque
nossa inteligência tem limites. As três quartas partes do gênero humano não se
ocupam disto; e a quarta busca, inquire, porém não encontrou nem encontrará.
O homem vê uma planta que vegeta, e disse que tem alma vegetativa; observa
que os corpos têm e dão movimento, e a isto chama força: vê que seu cão de caça
aprende o ofício, e supõe que tem alma sensitiva, instinto; tem idéias combinadas,
e a esta combinação chama espírito. Porém que entendes tu por essas palavras?
Indubitavelmente a flor vegeta; porém existe realmente um ser que se chame
vegetação? Um corpo rechaça a outro, porém possui dentro de si um ser distinto
que se chama força? O cão te traz uma perdiz, porém vive nele um ser que se
chama instinto? Todos os animais vivem; logo encerram dentro de si um ser, uma
forma substancial que é a vida? Se um tulipa puder falar e te disser: a vegetação
e eu somos seres que formamos um conjunto, não te enganaria a tulipa?
Vamos ver o que sabes e do que estás seguro: sabes que andas com os pés, que
digeres com o estômago, que sentes em todo o corpo, e que pensas com a cabeça. Vejamos se o único auxilio da razão pode proporcionar bastantes dados
para deduzir, sem um apoio sobrenatural, que tens alma.
Os primeiros filósofos, tanto caldeus como egípcios, disseram: é indispensável que
haja dentro de nós algo que produza pensamentos; esse algo deve ser muito sutil,
deve ser um sopro, deve ser um éter, uma quintessência, uma entelequia, um
nome, uma harmonia. Segundo o divino Platão, é um composto do mesmo e do
outro. «Constituem-no os átomos que pensam em nós», disse Epicuro depois de
Demócrito. Porém como um átomo pode pensar? Confessa que não sabes.
A opinião mais aceitável é sem dúvida a de que a alma é um ser imaterial, porém
indubitavelmente concebem os sábios o que é um ser imaterial? – Não, contestam
estes, porém sabemos que por natureza pensa. – E por onde o sabeis? –
Sabemos, porque pensa.– Parece que sois tão ignorantes como Epicuro. É natural
que uma pedra caia, porque cai; porém eu pergunto, quem a faz cair? –Sabemos
que a pedra não tem alma; sabemos que uma negação e uma afirmação não são
divisíveis, porque não são partes da matéria. –Sou de sua opinião; porém a
matéria possui qualidades que não são materiais, nem divisíveis, como a
gravitação: a gravitação não tem partes, não é, pois, divisível. A força motriz dos
corpos tampouco é um ser composto de partes. A vegetação dos corpos orgânicos,
sua vida, seu instinto, não constituem seres a parte, seres divisíveis; não podeis
dividir em dois a vegetação de uma roupa, a vida de um cavalo, o instinto de um
cão, ou mesmo que não podes dividir em duas uma sensação, uma negação ou
uma afirmação. O argumento que sacais da indivisibilidade do pensamento não
prova nada.
Que idéia tens da alma? Sem revelação, só podes saber que existe em seu interior
um poder desconhecido que o faz sentir e pensar. Porém esse poder de sentir e de
pensar, é o mesmo poder que o faz digerir e andar? Tens que confessar que não,
porque ainda que o entendimento diga ao estômago: digere, o estômago não
digerirá se está enfermo e se o ser imaterial manda aos pés que andem, estos não
andarão se tem gota. Os gregos compreenderam que o pensamento não tem
relação muitas vezes com o jogo dos órgãos, e dotaram os órgãos da alma animal,
e os pensamentos de um alma mais fina. Porém a alma do pensamento, em
muitas ocasiões, depende da alma animal. A alma pensante ordena às manos que
tomem, e tomam, porém não disse ao coração que bata, nem ao sangue que
corra, nem ao quilo que se forme, e todos esses atos se realizam sem sua
intervenção. Vê-se aqui almas que são muito pouco donas de sua casa.
Disto deve deduzir-se que a alma animal não existe, o que consiste no movimento
dos órgãos; e ao mesmo tempo há que concordar que ao homem não lhe abastece
sua débil razão nenhuma prova de que a outra alma exista.
Vejamos agora os vãos sistemas filosóficos que se tem estabelecido respeito ao
alma. Um deles sustenta que a alma do homem é parte da substância do mesmo
Deus. Outro que é parte do Grande Todo. Há sistema que assegura que a alma está criada para toda a eternidade. Há outro que assegura que a alma foi feita e
não criada. Vãos filósofos asseguram que Deus forma as almas à medida que as
necessita, e que chegam no instante da copulação: outros afirmam que se alojam
no corpo com os ânimos seminais. Filósofo houve que disse que se equivocavam
todos os que o haviam precedido, assegurando que a alma espera seis semanas
para que esteja formado o feto, e então toma possessão da glândula pineal;
porém que se encontra algum gérmen falso, sai do corpo e espera melhor ocasião.
A última opinião consiste em dar ao alma por morada o corpo caloso; este é o
local que determina Peyronie.
São Tomas em sua questão 75 e seguintes, diz: «que a alma é uma forma que
subsiste per se, que está toda em tudo, que sua essência difere de seu poder,
que existem três almas vegetativas: a nutritiva, a aumentativa e a generativa;
que a memória das coisas espirituais é espiritual, e a memória das corporais
corporal; que a alma razoável é uma forma imaterial quanto às operações, e
material quanto ao ser» Entendeste algo? Pois São Tomas escreveu duas mil
páginas tão claras como esta. Por isto, sem dúvida, o chamam o anjo da escola.
Não se tem inventado menos sistemas para o corpo, para explicar como ouvirá
sem ter ouvidos, como olhará sem ter nariz e como tocará sem ter mãos; em que
corpo se alojará em seguida, de que modo o eu, a identidade da mesma pessoa há
de subsistir, como a alma do homem que se tornou imbecil à idade de quinze
anos, e morreu imbecil aos setenta, voltará a unir o fio das idéias que teve na
idade da puberdade e por que meio um alma, a cujo corpo se cortou uma perna
em Europa e perdeu um braço em América, poderá encontrar a perna e o braço,
que quiçá se tenham transformado em legumes, ou tenham passado a formar
parte integrante da sangue de qualquer outro animal. Não terminaria nunca de
detalhar todas as extravagancias que sobre a alma
humana se tem publicado.
É singular que as leis do povo predileto de Deus não digam uma só palavra acerca
da espiritualidade e da imortalidade da alma, nem fale tampouco disto o Decálogo,
nem o Levítico, nem o Deuteronômio. Também é indubitável que em nenhuma
parte Moisés proponha aos judeus recompensas e penas em outra vida. Não lhes
fala nunca da imortalidade de suas almas, nem lhes disse que esperem ir ao céu,
nem lhes ameaça com o inferno. Na lei de Moisés tudo é temporal. No
Deuteronomio fala aos judeus deste modo:
«Se depois de haver tido filhos e netos prevaricais, sereis exterminados em sua
pátria e ficareis reduzidos a escasso número, que viverá espalhados pelas demais
nações.
»Eu sou um Deus zeloso que castigo a iniquidade dos pais até a terceira e até a
quarta geração.
»Honra a pai e mãe, com o fim de viver muitos anos.
»Sempre terás o que comer, a comida não os faltará nunca.
»Se obedeceres a deuses estrangeiros, serás destruído.
»Se obedeceres ao verdadeiro Deus, terás chuvas na primavera e no outono trigo, azeite, vinho, feno para os animais, e poderás comer e saciar-te.
»Imprimi estas palavras em seus corações, põe ante seus olhos, escreve-as sobre
suas portas com a idéia de que seus dias se multipliquem.
»Faz o que mando, sem tirar nem acrescentar nada.
»Se aparece um profeta que profetize sucessos prodigiosos, se sua predicação es
verdadeira, se o que prevê sucede, se diz: vamos, segui comigo aos Deuses
estrangeiros... mata-o em seguida, que se levante todo o povo contra ele para
feri-lo.
»Quando o Senhor os entregue as nações, degola sem perdoar a um só homem,
não tenhais piedade de ninguém.
»No comais animais impuros, como o são o águia, o grifo e o ixião.
»No comais tampouco animais ruminantes e que tenham as unhas fendidas, como
o camelo, a lebre, o porco espinho.
»Se observais estos mandatos, sereis abençoados na cidade e nos campos, e
serão benditos os frutos de seu ventre, de sua terra e de suas bestas.
»Se não obedeceis todos estes mandamentos nem observais todas as cerimônias,
sereis malditos na cidade e nos campos; sofrerás a pobreza e fome, morrerás de
frio, de febre e de miséria; tereis sarna, fístulas, ... os assaltarão úlceras nos
joelhos e nos músculos.
»O estrangeiro os prestará com usura, porém vocês não lhe prestareis desse
modo, porque vocês quereis servir ao Senhor.., etc., etc.
É evidente que em todas estas promessas e ameaças não se trata mais que do
temporal, e não se encontra uma só palavra que verse sobre a imortalidade da
alma nem sobre a vida futura. Alguns comentaristas ilustres acreditam que Moisés
estava inteirado desses dois grandes dogmas, e provam sua opinião apoiando-se
não que disse Jacó, o qual acreditando que haviam devorado a seu filho bestas
ferozes, exclamou: «Descerei com meu filho ao inferno;» isto é, morrei, já que
meu filho está morto. Provam também sua crença citando passagens de Isaías e
de Ezequiel; Porém os hebreus a quem falou Moisés, não poderiam ter lido a
Isaías nem a Ezequiel, que escreveram muitos séculos depois. É inútil questionar
sobre o que secretamente opinava Moisés, já que está comprovado que em suas
leis não falou nunca da vida futura, e que limita os castigos e as recompensas ao
tempo presente. Se conheceu a vida futura, por que não proclamou este dogma?
tal pergunta contestam vários comentaristas, dizendo que o Senhor de Moisés e
de todos os homens, reservou-se o direito de explicar em tempo oportuno aos
judeus uma doutrina que não estavam em estado de compreender quando viviam
no deserto. Se Moisés tivesse anunciado a imortalidade da alma, ter-lhe-ia
combatido uma importante escola dos judeus, a dos saduceus, autorizada pelo
Estado, que lhes permitia desempenhar os primeiros cargos da nação e nomear
grandes pontífices a seus sectários.
Até depois da fundação de Alexandria não se dividiram os judeus em três seitas: a
dos fariseus, dos saduceus e dos essênios. O historiador Flávio Josefo, que era
fariseu, nos refere no livro XIII de suas Antigüidades, que os fariseus acreditavam
na metempsicose; os saduceus acreditavam que a alma perecia com o corpo, e os essênios, que a alma era imortal. Segundo esses, as almas, em forma aérea,
descendiam da mais alta região dos ares, para introduzir-se nos corpos, pela
violenta atração que exerciam sobre elas; e quando morriam os corpos, as almas
que haviam pertencido aos bons, iam a morar mais além, lá do Oceano, em um
país onde não se sentia calor nem frio, nem havia vento nem chovia. As almas dos
maus iam a morar em um clima perverso. Esta era a teologia dos judeus. O que
devia ensinar a todos os homens, condenou a estas três seitas. Sem seu auxilio
não tivéssemos chegado nunca a compreender nossa alma, porque os filósofos
não tiveram jamais uma idéia determinada dela, e Moisés, único legislador do
mundo antigo, que falou com Deus frente a frente, deixou a humanidade imersa
na mais profunda ignorância respeito deste ponto. Só depois de mil e setecentos
anos teremos a certeza da existência e da imortalidade da alma. Cícero abrigava
suas dúvidas. Seu neto e sua neta souberam a verdade pelos primeiros galileus
que foram a Roma. Porém antes dessa época, e depois dela, em todo o resto do
mundo, donde apóstolos não penetraram, cada qual devia perguntar a sua alma,
que és? de donde vens? que fazes? onde vais? És um não sei que, que pensas e
sentes, porém ainda que sintas e penses mais de cem milhões de anos, não
conseguirás saber mais sem o auxilio de Deus, que te concedeu o entendimento
para que te sirva de guia, porém não para penetrar na essência. Assim pensou
Locke, e antes que Locke, Gassendi, e antes que Gassendi, muitos sábios; porém
hoje os bacharéis sabem o que esses grandes homens ignoravam.
Inimigos encarniçados da razão, se tem atrevido a opor a essas verdades
reconhecidas pelos sábios, levando sua má-fé e sua imprudência até o extremo de
imputar ao autor desta obra a opinião de que cada alma é matéria. Perseguidores
da inocência, bem sabeis que temos dito o contrario; e que dirigindo-nos a
Epicuro, a Demócrito e a Lucrécio, perguntamos: «Como podeis crer que um
átomo pense? confesso-te que não sabeis nada». Logo são uns caluniadores os
que me perseguem.
Ninguém sabe o que é o ser que chamamos espírito, ao que vocês mesmos dão
um nome material, fazendo-lhe sinônimo de ar. Os primeiros pais da Igreja
acreditavam que a alma era corporal. É impossível que nós, que somos seres
limitados, saibamos se nossa inteligência é substância ou faculdade; não podemos
conhecer a fundo nem o ser extenso nem o ser pensante, ou seja, o mecanismo
do pensamento. Apoiados na opinião de Gassendi e de Locke, afirmamos que por
nós mesmos não podemos conhecer os segredos do Criador. Sois Deuses que
sabeis tudo? Repetimos que só podemos conhecer pela revelação da natureza e o
destino da alma; e esta revelação não os basta. Devem ser inimigos da revelação,
porque perseguem aos que a crêem e aos que dela o esperam tudo.
Referimo-nos à palavra de Deus; e vocês, que fingindo religiosidade, são inimigos
de Deus e da razão, que blasfemam uns de outros, tratem a humilde submissão
do filósofo, como o lobo trata ao cordeiro nas fábulas de Esopo, e lhe dizem:
«Murmuras-te de mim o ano passado; devo beber teu sangue». Porém a filosofia
não se vinga, se ri desses vãos esforços e ensina tranqüilamente aos homens que
quereis embrutecer, para que sejam iguais a vós.
Conheça mais sobre Voltaire no blog, dafilosofia
Você encontra também: Drummond, Aristóteles, e outros.
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